Quem meteu medo em Virgínia Woolf? Não foi nenhum dos homens e mulheres que se apaixonaram pela autora de "Orlando" e "Passeio ao farol". Virgínia Woolf tremeu diante de uma moça baixinha, franzina e fragilizada pela tuberculose. A escritora, neozelandesa Katherine Mansfield (1888-1923), autora de "A Festa" e "Felicidade", teve a metade do sucesso e o dobro dos amantes de sua companheira, do ciclo de Bloombury. A relação de cumplicidade e ódio que ela manteve com Virgínia é um dos destaques de seu "Diário".
"Como invejo Virgínia: não admira que ela possa escrever. Há sempre no que ela escreve uma liberdade, uma tranqüilidade, como se estivesse em paz - um teto em cima, seus pertences ao redor, seu homem ao alcance da voz". Escreveu em 30 de novembro de 1919.
A sombra ofuscou a obra de Katherine depois da sua morte, aos 34 anos, mas foi sentida ainda em vida. As duas freqüentavam as mesmas reuniões, tomavam chá e vermute com James Joyce e eram amigas íntimas de D.H. Lawrence. Competiam em tudo: Virgínia não cansava de criticar a dureza e a crueldade da literatura da rival, que dava o troco humilhando a problemática autora de "Orlando" com sua simpatia e sua agitada vida amorosa. Virgínia teve mais tempo e mais oportunidade para ficar famosa. Mas não impediu que Katherine ostentasse brilho próprio ao aliar com extrema habilidade histórica, corriqueiras cheias de reviravoltas e bifurcações. Virgínia reconhecia o talento da escritora neozelandesa. Tanto que, quando soube da sua morte, confessou em seu diário: "Eu tinha inveja de sua literatura - a única literatura de que tive inveja na vida... Ela podia fazer o que não posso! Katherine já não é minha rival."
Nas cartas para Virgínia o horror da tuberculose
Mulher de muitos amores, Katherine se casou com o primeiro marido, George C. Bowden três semanas depois de conhecê-lo. A separação foi ainda mais meteórica - um dia depois do casamento - e ela justificou de modo simples: "Casei para ver como era, estava escrevendo um livro". Não era mentira. Pouco depois publica "Numa pensão alemã" que evidencia o enorme ceticismo de seus primeiros contos.
A dominação da descrença pela doçura fica clara nas anotações do diário e está diretamente ligada ao surgimento de John Murry, o segundo marido da escritora. Ele foi o companheiro das viagens, e encontros literários e inspirou contos como "Je ne parle pas français". O fim da era Murry, coincide com a volta do desespero. O casamento já apresentava sinais de falência em dezembro de 1919, quando a escritora sai da Inglaterra rumo a Riviera italiana, para tentar se curar. Murry não quis acompanhá-la. Sentindo-se abandonada, ela anota no diário o poema "O novo marido", dedicado à morte: "Assim, eu me tornei a noiva de um estranho/ E cada momento, por veloz/ Que ele voe, nós vivemos como se ele fosse nosso último".
Apesar da forte relação com Murry, as palavras mais ternas das anotações se referem a D.H. Lawrence. Não fica muito claro se Katherine chegou às vias de fato com o amigo, mas certamente nutria por ele um sentimento mais forte que a admiração intelectual. Ele não esconde o prazer ao contar, em carta para uma amiga, as pancadarias constantes entre ele e Frieda, sua mulher "gorda e insuportável". E aproveita cada minuto das visitas ao casal especialmente quando Frieda está doente, de cama: "Há algo tão agradável em L. e sua avidez, sua apaixonada avidez pela vida - é disso que a gente gosta tanto".As últimas anotações são de 31 de dezembro de 1922, nove dias antes de sua morte. Sofrendo com as febres do estágio final da doença, ela volta a Londres, de onde escreve à prima: "Não consigo dizer a alegria que é para mim o contato com pessoas que são vivas e sagazes e não se envergonham de serem o que são. É uma espécie de arejamento supremo estar entre elas".
Em 9 de janeiro de 1923, Murry a visita a pedido dela. Fica feliz em vê-la e reatam. Katherine Mansfield morre, neste mesmo dia, aos 34 anos.
Mansfield serviu de inspiração e foi alvo de uma legião de fãs, entre elas, Ana Cristina César, Vinicius, a própria Vírginia e Clarice Lispector. Essas duas últimas, inclusive, chegaram a ficar tão impressionadas com o texto de Mansfield, que tiveram reações bem peculiares a ele.
Virginia Woolf tomou um grande porre quando leu Felicidades e Outros Contos e ficou se perguntando "o que é isso que essa mulher escreveu?". A então adolescente Clarice Lispector logo que leu, na versão traduzida por Érico Veríssimo, o mesmíssimo Felicidade ..., não se conteve a pensar "sou eu". E esse "sou eu" se desenrolou em uma fonte inspiração que acompanhou boa parte da obra de Clarice.
Soneto a Katherine Mansfield
O teu perfume, amada — em tuas cartas
Renasce, azul... — são tuas mãos sentidas!
Relembro-as brancas, leves, fenecidas
Pendendo ao longo de corolas fartas.
Relembro-as, vou... nas terras percorridas
Torno a aspirá-lo, aqui e ali desperto
Paro; e tão perto sinto-te, tão perto
Como se numa foram duas vidas.
Pranto, tão pouca dor! tanto quisera
Tanto rever-te, tanto!... e a primavera
Vem já tão próxima! ...(Nunca te apartas
Primavera, dos sonhos e das preces!)
E no perfume preso em tuas cartas
À primavera surges e esvaneces.
Vinicius de Moraes
Vinicius, com este soneto, presta uma homenagem a Katherine Mansfield.
Extraído do livro "Vinicius de Moraes - Poesia Completa e Prosa", Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1998, pág. 250.
Leia: http://www.releituras.com/kmansfield_menu.asp
http://www.kromuskronopius.freesites.com.br/katherine%20mansfield.htm
http://www.secrel.com.br/jpoesia/agmansfield.htm
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