Glauber: a rocha que voa num labirinto



Há 21 anos, Glauber Rocha nos deixou, no dia 22 de agosto. Eu nunca tinha visto alguém morrendo, nunca vira o momento misterioso da passagem. Em volta da cama de sua agonia, os amigos se agarravam como náufragos nas bordas de um barco que ia partir.

Estávamos assustados, porque o Glauber era o pulmão por onde respirávamos, o coração que batia por nós e que agora fraquejava. Ele estava ali, ignorando-nos, concentrado não sei em que filme interior, em que roteiro para as estrelas. Parecia mesmo um astronauta, coberto de fios e tubos de respiração. Subitamente, Glauber se ergueu, como se fosse acordar, ressuscitar, como num milagre. Mas era a última convulsão e ele se aquietou e flutuou para longe.

Vocês, jovens que me lêem, podem pensar: "Deixe de idealizações com esse tal de Glauber... Afinal de contas, todo mundo morre..." Mas, não é literatura; morria ali a mais rica síntese das idéias de uma época brasileira: melancolia com esperança, a romântica fome de salvar o País, unindo poesia e política.

Esta semana surgem dois filmes sobre o nosso "profeta alado": o filme de Silvio Tendler, O Labirinto Glauber, e o documentário de seu filho, Eryk, A Rocha Que Voa. Neles se vê muito dessa fome de entendimento e salvação, que os garotos de hoje não têm mais, por sabedoria e... ignorância. "O sujeito que morre fica logo desinformado...", pensei, ao sair da Clínica Bambina, quando ele morreu e eu vi que o "incessante e vasto universo" continuava mudando, ali em Botafogo, menos o Glauber, coitado. Glauber, desinformado como todo morto, não soube da democratização de 85, não soube de Tancredo, nem de Sarney, nem de Collor, nem daquele que Glauber apelidara de "nosso Errol Flynn", FHC, "o príncipe da sociologia", com uma ponta de ironia.

Glauber preferiu morrer, porque sacou que seu desejo de absoluto era impossível. Ele percebeu que não ia suportar o mercadinho em que nos vendemos, não ia suportar a mediocridade anunciada em suas antenas de profeta. "Ahh... loucura..." - dirão os analistas -, "ele tinha um narcisismo patológico, fazia uma idealização da revolução..." Tudo bem... mas ele conseguiu momentos em seus filmes em que a arte parece tocar o real na tela. Em Deus e Diabo e Terra em Transe ele conseguiu explicar o Brasil.

Há o momento seminal de Terra em Transe, onde ele sintetiza as forças brasileiras que estão além da mera luta de classes, as oligarquias com sua cobiça e sua estupidez. Ali, no clímax da zona geral, o povo dança e canta entre ladrões, pelegos , demagogos, polícia, Igreja, bacharéis, prostitutas, todos num emaranhado barroco que culmina com o Jardel Filho tapando a boca de um sindicalista burro e falando para a tela: "Vocês já imaginaram o 'povo' no poder?" Foi a maior porrada na sociologia simplista dos derrotados de 64, o que lhe valeu o ódio eterno daqueles que vêem os pobres como uma divindade intocável e não como destituídos e manipulados. Daquela seqüência, saíram o teatro de Zé Celso e o tropicalismo, se bem que Caetano já era um prenúncio pós-moderno e Glauber, o último dos torturados "modernistas".

Naquela seqüência de Terra em Transe, estava o País de hoje, nessa suja orgia pré-eleitoral. Seus filmes trouxeram a idéia da complexidade contra os dualismos fáceis. Ele não era o guerreiro radical que pensam hoje. Ele trouxe a sobredeterminação, a dúvida para as certezas fáceis, o choque dos contrários. Quem fez isso antes? Ele foi o primeiro a apontar as razões da derrota em 64, ele foi o primeiro a falar em alianças, e teve a coragem de tentar (oh, ingênuo patriota...) cooptar o poder militar para um projeto nacional. Desesperado com a burrice das esquerdas, paralisadas por dogmas, tentou o saudável sacrilégio de imaginar uma adesão de militares para a abertura que vinha com Geisel, para além de qualquer vitimização rancorosa e masoquista. As patrulhas só faltaram empalá-lo como 'reacionário', 'adesista', logo ele, que buscava uma saída qualquer para a ditadura e o subdesenvolvimento.


O que morreu com o Glauber? É dificil explicar para os jovens do mercado.


Antes, lutávamos contra uma realidade complexa (que subestimávamos), sonhando com uma solução utópica e totalizante. Era o 'uno' contra o 'múltiplo'. Hoje, é o contrário; esboça-se entre neo-revolucionários uma luta que é diversificante, contra o totalitarismo das corporações capitalistas. Hoje, a luta é para dissolver, não para unir. Agora, os novos combatentes não sonham com o absoluto; sonham com o relativo. São defensores do vazio, da ecologia, da cultura não-descartável, do inútil, do que não é 'mercável'. Eles lutam contra inimigos sem rosto: a eficiência corporativa, a abolição do humano pela máquina (a máquina como o homem produtivo perfeito). Hoje, o inimigo principal não é mais a 'burguesia' gorda e fumando charuto; o inimigo é um método empresarial. Antes, as esquerdas pensavam em unidade. Hoje, o capitalismo corporativo é que almeja uma 'unidade'. Glauber não desejava uma revolução simpática, para dar comidinha aos pobres. Ele queria um terremoto épico, cheio de som e fúria, com explosões de tragédias e apoteoses, ele queria uma revolução que esmagasse a mediocridade, uma celebração do impossível e não a prudente organização social apenas. Hoje, o Brasil está parecidíssimo com Terra em Transe.

Glauber era uma espécie de Rimbaud, buscava uma felicidade social imensa, queria, como ele, "olhar o céu e ver praias infinitas cobertas de brancas nações em júbilo!". Por isso, não havia lugar para ele no mundo. O protagonista de Terra em Transe diz: "A poesia e a política são demais para um homem só." Mas, mesmo sabendo disso, Glauber tentou até o fim. E morreu disso.

Arnaldo Jabor- 2002


* Glauber Rocha nasceu no dia 14/03/1939



Poema do Amor

Tudo talvez se defina
na conspiração
da poesya e
da infecção,
estou no começo da vida
mas não sei se a saúde resiste
o mundo profetiza guerra global
e corta o mistério da existência
nos projetando nos braços vitais
revolucionando o prazer, essência.

Glauber Rocha - Junho, 1981.




Desejo

Queria você profundamente aberta
Num beijapaixonado sem memória e futuro
Queria
prazer desintegrado no infinitamor de nossos corpos desconhecidos

Queria um rio negro
como branco
contando a Vytoria
De uma tragycomedia morta

Queria o maramoroso
De tua pele viva
E a poesia da madrugada

Glauber Rocha




site oficial: http://www.tempoglauber.com.br/principal/index2.htm

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