Contos do Rio: 'That old black magic'



Há dez anos, naquela mesma data, eles trocaram o primeiro beijo, que resultou num casamento feliz e no pequeno sapeca que dormia no quarto.

Decidiram comemorar. E apesar de Ivete ter passado o dia estranhamente nervosa, para Bruno nada poderia atrapalhar aquela noite. Andando pela casa, checava se o ambiente estava ideal para juras de amor e sonhos de futuro: champanhe no gelo, meia-luz na sala, celulares desligados, Júnior dormindo como um anjo no quarto. Sim, tudo estava pronto.

Foi para a sala. Ivete estava sentada no sofá, quieta, olhando nervosamente para as mãos como uma criança que acabara de fazer uma travessura. Ele sorriu e se dirigiu ao aparelho de som.

— Hum, vejamos o que temos aqui... — disse, passando os olhos sobre os CDs colocados numa prateleira e fingindo escolher um. — Frank, meu velho olhos azuis, só poderia ser você.

Logo os primeiros acordes de “It had to be you” encheram a sala e Bruno pensou que nada poderia ser mais apropriado. Deixou-se enlevar por alguns segundos, até que um soluço incontido o fez voltar-se para Ivete, entre surpreso e enternecido.

— Ah, amor, não chore. Emocionada?

Ivete o encarou por alguns momentos e o choro aumentou. Bruno sentou-se a seu lado e tentou abraçá-la, mas ela se afastou. Olhando para o aparelho de som, ele disse:

— Frank, você não está agradando.

Ela se levantou e se dirigiu para a janela da sala, olhando sem ver o Cristo Redentor lá fora.

— Eu tenho algo para te contar...

Bruno estava surpreso e um pouco assustado.

— O que foi, meu amor?

Ela se virou e o fitou com os olhos transbordantes de lágrimas e aflição.

— Por que você quis se casar comigo? Por que me escolheu?

Bruno suspirou.

— Ora, amor, eu me casei contigo porque..., bem, porque... porque...

“Droga, essa me pagou desprevenido! Logo ela vai...”

Não deu para terminar o pensamento.

— Você não sabe, mas eu sei! — ela soluçou. — Eu sei... — e voltou a chorar.

Sentou-se no outro sofá e começou a falar.

— Você era o terror das mulheres, lembra, Bruno?

“Ai, meu Deus, pensei que ela já tinha esquecido”.

— Bem, admito que eu era um pouco namorador, sim...

— Você namorou todas as meninas mais bonitas e desejadas do bairro: a Lúcia, a Vanessa, a Carla, a Daniele, a Helena, a... como era o nome daquela ruiva, mesmo?

“Claudia”.

— Não me lembro, amor, faz tanto tempo...

— Não importa. Para mim, você nem dava bola, não me olhava de jeito nenhum...

Ela tornou a se levantar e deu as costas para ele, procurando o que olhar pela janela. Frank começou a cantar as primeiras estrofes de “Love and marriage”.

— Bruno, eu sempre te amei. Te amei da primeira vez que te vi. Mas era muito tímida, muito fechada, me achava feia. E você só tinha olhos para as bonitas, as alegres, as extrovertidas. Nunca imaginei que teria você para mim.

Bruno se recostou no sofá, a expectativa dançando nos seus olhos na voz de Sinatra.

— Comecei a sofrer por causa desse amor sem esperança, Bruno. Até que um dia, cheguei em casa chorando depois de tê-lo visto com a “ruiva”. Minha avó me viu chorando e me perguntou o motivo de tanta tristeza. E eu contei tudo para ela, que a razão de minha dor era um amor não correspondido. Lembro-me de que ela acariciou minha cabeça, sorriu e indagou: “Querida, se você está mesmo apaixonada, por que você não faz uma simpatia para conquistar o homem que ama?”.

Bruno arregalou os olhos, incrédulo, a boca levemente aberta.

— Eu não acreditava muito nisso — ela disse, e ele a viu abaixar a cabeça para logo em seguida voltar a encarar a janela à sua frente — Mas, estava tão triste, tão sem esperanças que, bem... eu fiz. Fiz exatamente como avozinha me ensinou a fazer.

Suspirando, ela continuou.

— Peguei um pedaço de papel branco e coloquei-o sobre um prato. Desenhei um coração do tamanho do fundo do prato, recortei o desenho e escrevi nas três primeiras linhas o seu nome. Nas outras três, escrevi meu próprio nome. Coloquei o desenho do coração no prato, derramei um pouco de mel sobre ele, juntamente com algumas pétalas de rosa branca... Depois, acendi uma vela branca bem no meio do prato, acendendo também as minhas esperanças de tê-lo, sempre pensando em você... Guardei o prato por sete dias. Depois, lavei as pétalas e coloquei-as dentro de um livro.

Bruno estava com uma expressão estranha no rosto.

— E o prato? O que você fez do prato?

— Deixei em um jardim onde existiam espinhos, como mandava a simpatia.

Havia um assim perto da minha casa...

— Sim, era o jardim do “seu” Almir... — ele murmurou.

— O que disse?

— Nada, amor, nada.

Ela voltou a suspirar e se virou para ele.

— Tudo o que sei é que, depois de um mês, você me chamou para ir ao cinema... e, bem... o resto você já sabe. Deus, eu já tinha me esquecido de tudo isso...

— E o que fez você se lembrar agora desta história toda?

— Ontem, quando eu estava arrumando a biblioteca, aproveitei para folhear alguns livros. Quando abri o “Cem Anos de Solidão”, vi as pétalas de rosa... e me lembrei de tudo! Ah, amor, me senti tão culpada! — afirmou, soluçando. — É por isso que você se casou comigo! Se não fosse a simpatia, se não fosse por aquela magia, nós jamais estaríamos aqui, juntos, esta noite!

Soluçando forte, ela foi para o quarto dos dois, fechando a porta atrás de si.

Justo na estrofe de “After you’ve gone”.

Bruno ficou sozinho na sala, pensativo. Mas não por muito tempo. Levantou-se e, deixando Frank cantando sozinho, dirigiu-se à biblioteca. Entrou, acendeu a luz e começou a procurar, entre seus próprios livros, uma edição que não via e folheava há muito tempo. Há dez anos, para ser exato. Depois de alguns minutos, “O pirotécnico Zacarias” estava em suas mãos e era ansiosamente folheado, até que as velhas pétalas de rosas brancas caíram de dentro do livro.

Ele se abaixou, pegou-as e puxou uma cadeira para sentar-se. As pétalas ressecadas em suas mãos o fizeram lembrar-se dos dias em que vivia amuado por não conseguir chamar a atenção da única garota que não conseguia conquistar. Dias em que poemas de amor o faziam suspirar e jurar que aquela metida da Ivete, que nunca olhava para ele, ainda seria dele. Dias em que arrumava qualquer desculpa para visitá-la e conseguir, talvez num acaso, romper as barreiras daquele coração feminino.

Houve um dia em especial que ele chegara de surpresa à casa de Ivete e não a encontrara; tinha saído com os pais. Convidado pela avozinha, entrou e, talvez influenciado pelo chocolate e pelos biscoitos caseiros, abriu-se com ela, sem citar o nome da neta. E a seguir ouviu uma espantosa sugestão:

— Se ama mesmo esta garota, por que não faz uma simpatia para conquistá-la?

Mesmo sem acreditar, ele a fez — afinal, não custava nada. Fez também “seu” Almir ficar 15 dias escondido atrás do muro de casa para descobrir quem estava colocando pratos sujos de mel no jardim. E, uma semana depois, sem muita esperança, ele convidou Ivete para ir ao cinema...

Bruno correu para o quarto. Testou a maçaneta. Não estava trancada. Abriu a porta e deparou-se com Ivete sentada na beira da cama. Ela se ergueu e se dirigiu a ele, envergonhada e triste.

— Bruno, eu... — mas foi calada por um abraço e um beijo apaixonado, que fizeram sua cabeça rodopiar, exatamente como dez anos atrás. Exatamente como sempre.

Bruno olhou ternamente para a esposa e, perdido em seus olhos, disse:

— Casei-me contigo porque você é a mulher da minha vida.

Novamente se abraçaram e se beijaram. Bruno pegou-a no colo.

— Amor, tenho algo para te contar... — disse sorrindo, ao colocá-la na cama — mas pode ser amanhã. — Notou a curiosidade no olhar da esposa e, antes que ela perguntasse o que era, beijou-a novamente. E ao mergulhar na imensidão do amor de ambos, ainda pôde ouvir Frank cantar, lá da sala:

“Darling, down and down I go, round and round I go In a spin, loving the spin I’m in, under that old black magic called love”.


Maurício Luz


** Os Contos do Rio têm sido uma surpresa agradabilíssima que o encarte Prosa e Verso, do Globo tem nos dado. Esse delicioso conto foi dica do amigo Carlos. Puxem uma cadeira, peguem um cafezinho e leiam, tenho certeza de que vocês vão gostar.

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