"- Se eu pudesse dormir, Sr. Doutor, se eu pudesse dormir, que felicidade!
- Sossega que vais dormir, rapariga...
- Então que ninguém me acorde, minha Mãe... Que ninguém me acorde...
E ninguém mais a acordou."
Miguel Torga



"É da brevidade com que usa as palavras como as diz o homem do campo que Torga retira a sua grandeza. E é a olhar para dentro de si mesmo e dos outros que ele compõe as suas melhores páginas."
Miguel Torga, poeta que eu adoro, era o pseudônimo de Adolfo Correia da Rocha.
Nasceu em 1907 em S. Martinho de Anta, conselho de Sabrosa, Trás-os-Montes. Veio para o Brasil e ficou até 1925 quando regressou a Coimbra onde se formou em Medicina.

Resignação

Como todas as mulheres da montanha, que no meio do gosto do amor enviuvam com os homens vivos do outro lado do mar, também ela teria de sofrer a mesma separação expiatória, a pagar os juros da passagem anos a fio, numa esperança continuamente renovada e desiludida na loja da Purificação, que distribuía o correio com a inconsciente arbitrariedade dum jogador a repartir as cartas dum baralho.
-O teu homem tem-te escrito, Maria? - perguntava o prior de Páscoa a Páscoa.
-Ele não, senhor. Há quinze anos...
Não acrescentava a mínima queixa à resposta. Fiel ao amor jurado, deixava que todos os encantos lhe mirrassem no corpo, numa resignação digna e discreta. Com o filho sempre agarrado às saias, como um permanente sinal de que já pagara à vida o seu tributo de mulher, mourejava de sol a sol para manter as courelas fofas e gordas. Depositária do pobre património do casal, queria conservá-lo intacto e granjeado. Se o outro parceiro desertara, mais uma razão para se manter firme e corajosa ao leme do pequeno barco.
-Nada, Maria? - O prior já nem se atrevia a alargar a pergunta.
-Nada.
Respondia sem revolta ou renúncia na voz. Objectivava a situação, lealmente. O que sentia por dentro era o segredo da sua serenidade.

Miguel Torga - Contos da Montanha (1941)



A vida no Brasil não lhe foi suave, uma tia rude no trato com o menino sensível o marcaria por longo tempo. No entanto, anos depois ao voltar, descobriu emocionado que trazia o Brasil tatuado na alma e a reconciliação que se dera no plano da saudade ao escrever sobre sua adolescência: "Foi um fermentar que nunca mais acabou em mim, porque se deu no meu corpo dos ossos ao coração. Nada que se possa dizer em palavras, porque não tem expressão condigna a quentura deste lume que recebi de uma terra incendiada de vida, de força e de liberdade", confirmava-se naquela visita a antiga fazenda em Minas Gerais.


Apelo

Porque não vens agora, que te quero,
E adias esta urgência?
Prometes-me o futuro, e eu desespero.
O futuro é o disfarce da impotência...

Hoje, aqui, já, neste momento
Ou nunca mais.
A sombra do alento é o desalento...
O desejo é o limite dos mortais.

Miguel Torga, in "Antologia Poética" -


Torga começou conhecido como poeta, tendo mais tarde ganho notoriedade com os seus contos ruralistas e os seus dezesseis volumes de Diário, estes publicados entre 1941-1995. Várias vezes indicado para o Prémio Nobel da Literatura, tornou-se um dos mais conhecidos autores portugueses do século XX.
Morreu em 17 de Janeiro de 1995, sendo enterrado em S. Martinho da Anta, junto dos pais e irmã.


A Ceia
...
Nunca mais
Meus olhos terão de ver
Tanta solidão sem fim:
- Ser dono desta desgraça
De não ter terra onde nasça
Uma flor que cresça em mim...

Miguel Torga



A um Secreto Leitor


No silêncio da noite é que eu te falo
Como através dum ralo
De confissão.
Auscultadores impessoais e atentos,
Os teus ouvidos são
Ermos abertos para os meus tormentos.

Sem saber o teu nome e sem te ver
- Juiz que ninguém pode corromper -,
Murmoro-te os meus versos, os pecados,
Penitente e seguro
De que serás um búzio do futuro,
Se os poemas me forem perdoados.

Miguel Torga





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http://www.bragancanet.pt/filustres/torga.html

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