Conforme prometi a ela, aí esta...





Cartas

"Estou hoje num dos meus dias cinzentos, como diz nosso escritor; dia em que tudo é baço e pesado como a cinza, dia em que tudo tem a cor uniforme e nevoente dele, desse cinza em que eu às vezes sinto afundar o meu destino. Estou triste e vagamente parva, hoje, e no entanto, estou na capital do Alentejo; aos meus ouvidos chega o ruído dos automóveis, o barulho cadenciado das patas dos cavalos de luxo, o pregão forte e sensual que é toda a alma de mulher do povo, e por cima disto tudo, a espalhar vida, luz, harmonia, sinto o sol, um sol de fogo, o sol do meu Alentejo sensual e forte como um árabe de vinte anos! Pois tudo me irrita! Que direito tem o sol para se rir hoje tanto? Donde vem o brilho que Deus pôs, como um dom do céu, nos olhos das costureirinhas que passam? Donde vem a névoa de mágoa que eu trago sempre nos meus?! Vê?... É o dia pesado, o dia em que eu sou infinitamente impertinente e má como uma velhota de oitenta anos.
Eu odeio os felizes, sabes? Odeio-os do fundo da minha alma, tenho por eles o desprezo e o horror que se tem por um reptil que dorme sossegadamente. Eu não sou feliz mas nem ao menos sei dizer porquê. Nasci num berço de rendas rodeada de afectos, cresci despreocupada e feliz, rindo de tudo, contente da vida que não conhecia, e de repente, amiga, ao alvorecer dos meus 16 anos, compreendi muita coisa que até ali não tinha compreendido e parece-me que desde esse instante cá dentro se fez noite.
Fizeram-se ruínas todas as minhas ilusões, e, como todos os corações verdadeiramente sinceros e meigos, despedaçou-se o meu para sempre. Podiam hoje sentar-me num trono, canonizar-me, dar-me tudo quanto na vida representa para todos a felicidade, que eu não me sentiria mais feliz do que sou hoje. Falta-me o meu castelo cheio de sol entrelaçado de madressilvas em flor; falta-me tudo o que eu tinha dantes e que eu nem sei dizer-te o que era... É a história da minha tristeza. História banal como quase toda a história dos tristes."


Florbela Espanca




"...Sou uma céptica que crê em tudo, uma desiludida cheia de ilusões, uma revoltada que aceita, sorridente, todo o mal da vida, uma indiferente a transbordar de ternura. Grave e metódica até à mania, atenta a todas as subtilezas dum raciocínio claro e lúcido, não deixo, no entanto, de ser uma espécie de D. Quixote fêmea a combater moinhos de vento, quimérica e fantástica, sempre enganada e sempre a pedir novas mentiras à vida, num dar de mim própria que não acaba, que não desfalece, que não cansa! Toda, enfim, nesta frase a propósito de Delteil: "Très simple avec son enthousiasme à sa droite et son désespoir à sa gauche.""

Florbela Espanca




"O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais; há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesma compreendo, pois estou longe de ser uma pessoa; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudade… sei lá de quê!"


Florbela Espanca








Vida

Florbela D'Alma da Conceição Espanca nasceu em 8 de dezembro de 1894 em Vila Viçosa, Alentejo, Portugal. Tinha um irmão, Apeles, filho de uma relação adúltera de seu pai. Florbela passou a infância sob os cuidados de Maria do Carmo , nunca conheceu a mãe e tinha profundo amor por Apeles, a única pessoa no mundo que possuia a mesma história de origem que ela, daí a grande cumplicidade entre os dois que até mesmo levou alguns a sugerirem um amor incestuoso. Em 1913 com Alberto de Jesus Silva Coutinho, com quem viveu 8 anos. Sustentavam-se dando aulas particulares. No quarto ano de casada concluiu o sétimo ano de Letras no liceu da cidade de Évora e resolveu matricular-se na Faculdade de Direito de Lisboa, Adquire nessa ocasião uma infecção nos pulmões e sofre uma depressão nervosa. Nesse período de doença travou conhecimento e relacionamento com inúmeros médicos e ela aproveita e exagera sua moléstia para angariar atenção.

Florbela casa e se separa diversas vezes, numa espécie de busca angustiada pela felicidade. Vive do saudosismo de um passado que não lhe foi muito risonho, mas do qual as lembranças cheias de mágoas lhe servem de alento . Foi uma mulher fora dos padrões da época. Apesar de toda a melancolia, escreve com muito vigor.



Morte


Florbela morreu a 7 de dezembro de 1930, em Matosinhos, tendo sido sepultada no dia seguinte, data em que completaria 36 anos de idade. Oficialmente, as causas de sua morte são naturais, mas a esta versão contrapõem-se a hipótese de suicídio, pois em Agosto de 1928 atentara contra sua vida.
Seu fado foi o de desejar ser Alguém, para Além dos limites do seu mundo e do seu tempo. Mesmo após a morte, por longo tempo os círculos sociais e culturais portugueses condenaram ao ostracismo, quando não ao repúdio, a sua vida e obra.




Leia: http://homepage.oninet.pt/021mak/

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