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"Ame como a chuva fina que cai silenciosa, mas que faz transbordar rios."
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Quem dá importância a pingos de chuva? São só pingos, tão finos, tão pequenos. Talvez por isso mesmo. Caem paulatinamente, aos pouquinhos e quando se vê transbordam rios, redefinem as margens, arrancam da terra troncos, flores, folhas, mudam o curso da vida...E é muito bom que seja assim, se antes perdido, agora a correnteza pode levar porque qualquer lugar é uma espécie de lar, afinal conhecemos cada um daqueles pingos.
Fabrício Carpinejar
Acredito em amor virtual. Não adianta se valer do ceticismo da carne e dizer que a distância engana, que as pessoas não se conhecem, que pode haver desfeita e desilusão. Acredito em amor virtual. Pois nada é mais expansivo e verdadeiro do que se conhecer pela linguagem. Nada é mais íntimo e pessoal do que se doar pela linguagem.
Não serei convencido da frieza do relacionamento na web, da articulação de fachadas e pseudônimos, da ironia e dos subterfúgios denunciados nos chats. O que acontece na internet reproduz a vida com seus defeitos e virtudes, não se pode exagerar na desconfiança. O amor virtual é tão real quanto o sangue. Não preciso enxergar o sangue para verificar se ele corre. O amor virtual trabalha com a expectativa e a ansiedade. Como um teatro que se faz de improviso, com a ardência de ser aceito aos poucos, sem o temor e os avisos em falso do rosto.
Na correspondência, há a esperança de ser amado e de entreter as dores. A esperança aceita tudo, transforma todo troco em investimento. Um gesto de redobrada atenção, uma resposta alentada, uma frase diferente, um cuidado excessivo, a cordialidade do eco e o amor se instala.
Não há o julgamento pelas aparências (que se assemelha a uma execução sumária), mas o julgamento em função do que se imagina ser, do que se deseja, do que se acredita. São raros os momentos em que se pode fechar os olhos para adivinhar. Adivinhar é delicioso - é se dedicar com intensidade às impressões mais do que aos fatos. Alguns dirão que é alienação permanecer horas e horas teclando ou diante de uma câmera e do computador. Mas é envolvimento, amizade, compromisso. É pressentir o cheiro, formigar os ouvidos, seduzir devagar. Não conheço paixão que não ofereça mais do que foi pedido.
Quem reclamava da ausência de preliminares deve comemorar o amor virtual? Nunca se teve tanta preliminar nas relações, rodeios, educação. Fica-se excitado por falar. Devolve-se à fala seu poder encantatório de persuadir. Afora o espaço democrático: um conversa e o outro responde. Findou o temporal de um perguntar para outro fingir que está ouvindo. No amor virtual, a linguagem é o corpo. Dar a linguagem é entregar o que se tem de mais valioso. É esquecer as roupas na corda para escutar a chuva. É recordar de memórias imprevistas como do tempo em que se ajudava à mãe a contornar com o garfo a massa do capeletti. Conversa-se da infância, dos fundos do pátio, do que ainda não se tinha noção, sem ficar ridículo ou catártico. Abre-se a guarda para olhares demorados nos próprios hábitos. A autocrítica se converte em humor; a compreensão, em cumplicidade. É uma distração para concentrar. Uma distração para dentro. Vive-se com mais clareza para contar e se narrar.
Amor virtual é conhecer primeiro a letra, para depois conhecer a voz. A letra é o quarto da voz.
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"O mesmo acontece com o amor. Quando não se entende o que se sente é a melhor parte. O trecho da paixão, a vontade de se aproximar sem pensar. A vontade de se encontrar para permanecer mudo. A vontade de telefonar para não dizer coisa alguma, apenas respirar ofegante e gemer diante do aparelho como operador do telessexo. Os namorados se beijam loucamente nem sempre para beijar, e sim para não ter que falar. As palavras são incômodas. A palavra destrói o amor, o beijo cura. " Carpinejar
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o excesso
é o mínimo
que peço"
Luiz Paulo Vasconcellos
Eu já errei muito com o amor. Todo mundo erra, mas errei sempre pela mesma causa: procurava no amor o meu reconhecimento. Procurava corrigir o que estava torto em mim e alimentar meu narcisismo.
Queria ser louvado, endeusado, salvo da autocrítica. Amar seria uma vingança ao menino tímido, ao menino feio, ao menino ingênuo. Um escudo para as ofensas que recebi e humilhações que passei. Não me interessava que o amor passasse a limpo meus rascunhos. Tinha a obrigação de queimar o que fui.
As relações não poderiam dar certo. Quem aguarda o elogio, afasta a verdade. Esperava contar com a imunidade amorosa. Não buscava um contraponto, e sim uma religião. Não amava uma mulher, eu me amava a partir dela. Ou me amava pelas suas observações e rituais.
Pensava que o amor fosse esquecer o passado. Não, o amor carrega o passado e ainda separa o lixo seco do orgânico. Amadurecer não consistia em mudar de personalidade, mas conviver com todas as personalidades, inacabadas e falhas.
Fui um sedutor no início de relacionamentos: fácil se apaixonar, fácil o encontro, em que tudo é novidade e interação, em que fazemos vista grossa aos defeitos. Havia resistência em prolongar a união. Ao mínimo sinal de casamento, de escova de dente no mesmo copo, escapava. Porque não admitia que alguém me conhecesse. Eu me conhecia e não gostava de mim, e não desejava que ela me acompanhasse no desgosto. Nem permitia sua aproximação. Fingia gostar de mim no começo, fugia de mim no final.
O amor é perigoso para quem não resolveu seus problemas. O amor delata, o amor incomoda, o amor ofende, fala as coisas mais extraordinárias e apocalípticas sem recuar. O amor é a boca suja, o beijo na boca suja. O amor não pretende a salvação, o amor nos tortura com as lembranças que não inventamos. O amor repetirá na cozinha o que foi contado em segredo no quarto. O amor vai arejar sua casa, abrir o assoalho, o porão proibido, fazer faxina em sua memória. Colocar fora o que precisava, reintegrar ao armário o que temia rever. O amor depende de nossa capacidade de enfrentar a honestidade.
Añais Nin está certa quando escreveu que o amor nunca morre de morte natural. Morre porque o matamos ou porque o deixamos morrer. Morre enforcado na mesa, morre esfaqueado pelas costas, morre eletrocutado pela sinceridade, morre atropelado pela grosseria. Não morre de velhice, em paz com a cama e com os olhos.O amor é assassinado. Assassinado porque o outro conviveu com o nosso lado escuro e não admitimos ter sido menos do que uma promessa. Não admitimos tropeçar e voltar atrás. Não admitimos o fracasso de pedir ajuda. Não admitimos que o nosso sofrimento conheça a alegria da compreensão. Assassinado pela arrogância da dor e pelo orgulho do medo.
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Pode chorar em minha boca
Fabrício Carpinejar
Quando a gente ama, a cidade encolhe.
Quando a gente ama, atravessa-se a cidade sem contar as quadras. Rodoviária é perto de qualquer lugar. É como nadar em uma raia infinita. Não se percebe o trajeto, não se controla o esforço, não se repara no cansaço. Desenhos em portas, fruteiras e fachadas antigas estimulam o gosto de seguir adiante. Os bares e lugares são descobertos ao acaso, como gravuras avulsas de um livro. Caminha-se ao som dos anéis, embalado pelas conversas que não terminam, pelo muro que se sobe para testar as molas dos pés na descida, pelas escadarias que são o sofá dos namorados noturnos.
Quando se ama, a cidade baixa os telhados. Não é preciso se escorar para respirar. Não precisamos de bengalas, aldravas, guarda-chuvas, esteios, muletas, corrimões, maçanetas e trincos. Não se envelhece, a gente se espalha.
Quando se ama, não há fim, não há mapa, não há tristeza sozinha, não há taxímetro estipulando preço. As paredes dão licença. As estátuas conspiram datas. As praças mudam de lugar. É uma corrida solta, dispersa, distraída, como uma alegria nova. A voz não sobe mais do que um pássaro. A cidade se torna menor do que a amizade, menor do que os cílios engavetando a lua. A cidade se torna pequena, que caberia no bolso do casaco como um isqueiro. Caberia no bolso do casaco como uma aspirina. Caberia no bolso do casaco como um preservativo. Caberia no bolso do casaco como um relógio quebrado.
Quando se ama, as ruas escorrem como calçadas lavadas. Escorrem como temporal. O meio-fio incha de barcos. As garagens perdem seu declive. As ruas ficam líquidas, as lombas só descem, as curvas acentuam as luzes.
Fácil ir, pois não tem volta; fácil ir, pois não tem a cobrança do retorno; fácil ir, pois a mão descansa do ônibus; fácil ir, pois não procuramos moedas e o contorno dos nomes. Não existe velocidade comparável a dois corpos decididos, doados, dados, esculturas mais juntas do que fogo.
Quando se ama, as vitrines são as janelas das pernas. Consulta-se o retrovisor para ajeitar a carne dos lábios. A camisa está dobrada no corpo com a sobra de uma mala. Vontade de viajar pela língua e pela ponta dos dedos.
Já quando a gente se separa, a cidade aumenta.
Escondo o amor na amizade
Fabrício Carpinejar
Eu respirava pela boca. A boca obrigada a falar e respirar ao mesmo tempo. O nariz preguiçoso, mais alto e forte, mandava nela. E ela obedecia.
Não descansava os lábios. Entreabertos. Cumprindo um turno pela voz e o outro pelo sopro. Os dentes como lápis apontados pelo vento.
Os lábios sem cola, sem comissura, sem liga. Os lábios levantando-se ao beijo todo sempre. No meio da escada.
Meus lábios não dormiram sequer uma vez em minha vida.
Do mesmo modo que trocava a boca pelo nariz, confundia a amizade com o amor.
Não amei nenhuma mulher pela atração simples e direta. Pela beleza fulminante. Pela sedução lacônica e apressada.
Não amei uma mulher à primeira vista. Meus amores foram a prazo, bem parcelados. Com o carnê cheio de folhinhas. Conversados longamente para encontrar a quietude. Observados, desesperados, lentos. Segurar inicialmente os braços, depois as mãos, bem depois o rosto.
Amei pela convivência, pelas afinidades, pelas discussões, pelos cantos da chuva, pelo sol pintado do meio-fio. Amei na continuidade, no alinhamento do riso, nas brincadeiras involuntárias. Amei ao expor confidências ¿ as confidências já eram provas de que amava. Desabafei muito antes de amar, pedi muito ajuda antes de amar, fui incompreendido muito antes de amar.
Amei durante a semana mais do que nos finais de semana.
Amigo leal e pontual de uma menina, amigo inseparável, não tinha jeito: queria namorá-la. Não conseguia parar o corpo. O amor aparecia como compreensão inteira, dedicada. Não desejava uma mulher que não me entendesse, desejava quando ela me entendia. Percebia o amor como um segredo desde a escola. Um amigo secreto. Ele gosta de alguém e ninguém sabe. Ela gosta de alguém e ninguém sabe. Guardava-se uma paixão com coração e iniciais, sorrateiramente, na última página do caderno de matemática. Não era assim?
Escondia o amor dentro da amizade. Não havia melhor esconderijo.
A amizade me levava ao amor. Mas o amor, logo que encerrava, renunciava a amizade do começo. Não dava para voltar à amizade quando me declarava. Para continuar, a amizade não pode ter a consciência do amor. A amizade termina se o amor surge, a amizade termina igualmente se o amor acaba.
Não mudei com o tempo. Amo pela amizade, respiro pela boca, converso pela respiração.
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