Silêncio, sexo e verdade
Uma entrevista com Michel Foucault
realizada em inglês em Toronto, 22 de jun de 1982.
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- A apreciação do silêncio é uma das numerosas coisas que um leitor, sem que se espere, pode aprender de sua obra. Você tem escrito sobre a liberdade que o silêncio permite, sobre suas múltiplas causas e significações. Em seu último livro[1], por exemplo, você diz que não existe apenas um, mas numerosos silêncios. Seria fundado pensar que há ai um potente elemento autobiográfico?
- Penso que qualquer criança que tenha sido educada em um meio católico justamente antes ou durante a Segunda Guerra Mundial pôde experimentar que existem numerosas maneiras diferentes de falar e também numerosas formas de silêncio. Certos silêncios podem implicar em uma hostilidade virulenta; outros, por outro lado, são indicativos de uma amizade profunda, de uma admiração emocionada, de um amor. Eu lembro muito bem que quando eu encontrei o cineasta Daniel Schmid, vindo me visitar, não sei mais com que propósito, ele e eu descobrimos, ao fim de alguns minutos, que nós não tínhamos verdadeiramente nada a nos dizer. Desta forma, ficamos juntos desde as três horas da tarde até meia noite. Bebemos, fumamos haxixe, jantamos. Eu não creio que tenhamos falado mais do que vinte minutos durante essas dez horas. Este foi o ponto de partida de uma amizade bastante longa. Era, para mim, a primeira vez que uma amizade nascia de uma relação estritamente silenciosa.
É possível que um outro elemento desta apreciação do silêncio tenha a ver com a obrigação de falar. Eu passei minha infância em um meio pequeno-burguês da França provincial, e a obrigação de falar, de conversar com os visitantes era, para mim, ao mesmo tempo algo muito estranho e muito entediante. Eu me lembro de perguntar por que as pessoas sentiam a obrigação de falar. O silêncio pode ser uma forma de relação muito mais interessante.
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- Há, na cultura dos índios da América do Norte [2], uma apreciação do silêncio bem maior do que nas sociedades anglofônicas ou, suponho, francofônica.
- Sim. Eu penso que o silêncio é uma das coisas às quais, infelizmente, nossa sociedade renunciou. Não temos uma cultura do silêncio, assim como não temos uma cultura do suicídio. Os japoneses têm. Ensinava-se aos jovens romanos e aos jovens gregos a adotarem diversos modos de silêncio, em função das pessoas com as quais eles se encontrassem. O silêncio, na época, configurava um modo bem particular de relação com os outros. O silêncio é, penso, algo que merece ser cultivado. Sou favorável que se desenvolva esse êthos do silêncio.
- Você parece estar fascinado pelas outras culturas, e não somente pelas culturas antigas; durante os dez primeiros anos de sua carreira, você viveu na Suécia, na Alemanha Ocidental e na Polônia. Este parece um itinerário um pouco atípico para um acadêmico francês. Você poderia explicar as razões que o motivaram a deixar a França e por que, quando você retorna em 1961, você teria, se me permite dizer, preferido viver no Japão?
- Há hoje, na França, um esnobismo do antichauvinismo. Espero que eu não seja, por meio do que eu disse, associado como representante desta atitude. Se eu fosse americano ou canadense, talvez eu sofresse com certos aspectos da cultura norte americana. De todo modo, eu sofri e sofro ainda muitos aspectos da vida social e cultural francesa. Esta é a razão pela qual eu deixei a França em 1955. Por outro lado, eu vivi também dois anos na Tunísia, de 1966 a 1968, mas por razões puramente pessoais.
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- Você poderia lembrar alguns dos aspectos da sociedade francesa que afetaram você?
- Quando eu deixei a França, a liberdade em matéria de vida pessoal era terrivelmente restrita. Na época, a Suécia parecia um país muito mais liberal. Mas lá, eu descobri que ter um certo tipo de liberdade pode ter, se não os mesmos efeitos, pelo menos tantos efeitos restritivos quanto em uma sociedade diretamente restritiva. Esta foi, para mim, uma experiência muito importante. Depois, tive a oportunidade de passar um ano na Polônia onde, claro, as restrições e o poder de opressão do Partido Comunista é algo verdadeiramente diferente. Em um tempo relativamente pequeno, eu pude experimentar ao mesmo tempo o que era uma velha sociedade tradicional - como era a França dos fins dos anos quarenta e o início dos ano cinqüenta - e a nova sociedade livre que era a Suécia. Eu não diria que tive a experiência da totalidade das possibilidades políticas, mas tive uma amostra do que era, naquela época, as diferentes possibilidades das sociedades ocidentais. Essa foi uma boa experiência.
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- Centenas de americanos vieram a Paris nos anos vinte e trinta, atraídos por aquilo que levou você deixar a França nos anos cinqüenta.
- Sim, mas se eles vêm hoje a Paris, não é mais, penso, a fim de encontrar a liberdade. Eles vêem para apreciar o sabor de uma velha cultura tradicional. Eles vêem na França como os pintores iam à Itália no séc. XVII: a fim de assistir ao declínio de uma civilização. De todo modo, o sentimento que experimentamos da liberdade é lembrado bem mais em países estrangeiros do que em nosso próprio país. Enquanto estrangeiros, podemos fazer pouco caso de todas essas obrigações implícitas que não são inscritas na lei, mas no modo geral de comportamento. Por outro lado, o fato apenas de mudar as obrigações é percebido ou experimentado como uma espécie de liberdade.
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- Retornemos um pouco, se isso não o entedia, a seus primeiros anos em Paris. Creio que você trabalhou como psicólogo no hospital Sainte-Anne.
- Sim. Eu trabalhei durante pouco mais de dois anos, creio.
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- E você disse em algum lugar que você se identificava mais com os pacientes do que com o corpo médico. Isso é, seguramente, uma experiência bem pouco habitual para um psicólogo ou um psiquiatra. Daí vem o fato de que você tenha - notadamente depois desta experiência - experimentado a necessidade de colocar radicalmente em questão a psiquiatria, quando tantas outras pessoas se contentavam em tentar refinar os conceitos estabelecidos?
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- De fato, eu não tinha um emprego oficial. Eu estudava psicologia no hospital Sainte-Anne. Era o início dos anos cinqüenta. Na época, o estatuto profissional dos psicólogos nos hospitais psiquiátricos não era claramente definido. Em minha qualidade de estudante de psicologia (de início estudei filosofia e depois psicologia), eu tinha, em Sainte-Anne, um estatuto muito bizarro. O chefe do serviço era muito gentil comigo e me deixava em total liberdade de ação. Ninguém, entretanto, cuidava do que eu deveria fazer: eu podia fazer qualquer coisa. Eu ocupei, de fato, uma posição intermediária entre o quadro de pessoal e os pacientes; mas eu não tinha, nisso, nenhum mérito, isso não era o resultado de uma conduta particular de minha parte, era a consequência desta ambigüidade de meu estatuto, que fazia que eu não estivesse verdadeiramente integrado ao quadro de pessoal. Tenho clareza que o meu mérito não tinha nada a ver com minha ocupação, porque na época eu sentia tudo isso como uma forma de mal-estar. Apenas alguns anos mais tarde, quando eu comecei a escrever um livro sobre a história da psiquiatria, que esse mal-estar, esta experiência pessoal pôde tomar a forma de uma crítica histórica ou de uma análise estrutural.
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- O hospital Sainte-Anne tinha alguma coisa de particular? Poderia, em algum de seus empregados, uma imagem particularmente negativa da psiquiatria?
- Não!!! Era um desses grandes hospitais como você pode imaginar; e eu devo dizer que ele era antes melhor que a maioria dos grandes hospitais de província que eu visitei para a continuação. Era um dos melhores hospitais de Paris. Não, não havia nada de apavorante. E precisamente isto era importante. Se eu tivesse feito o mesmo trabalho em um pequeno hospital de província, talvez eu me sentisse tentado a imputar esses fracassos à sua situação geográfica ou à suas insuficiências próprias.
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- Você chega a evocar, com um tom de leve desprezo, que é o lugar onde você nasceu; você tem, no entanto, boas lembranças de sua infância em Poitiers, nos anos trinta e quarenta?
- Claro. Minhas lembranças são antes... eu não usaria exatamente a palavra "estranhas", mas isso que me bate hoje, quando eu tento reviver essas impressões, é que a maior parte de minhas grandes emoções são ligadas à situação política. Eu me lembro muito bem de ter experimentado um de meus primeiros grandes terrores quando o chanceler Dollfus foi assassinado pelos nazistas. Era 1934, eu acho. Tudo isso já é muito distante. Raras são as pessoas que se lembram do assassinato de Dollfus. Mas eu me lembro de estar aterrorizado por isto. Eu penso que eu senti ai o meu primeiro grande medo da morte. Eu lembro também da chegada de refugiados espanhóis à Poitiers; e de me embater em sala de aula com meus colegas em função da guerra na Etiópia. Eu penso que os meninos e meninas da minha geração tiveram sua infância estruturada por esses grandes acontecimentos históricos. A ameaça de guerra era nosso pano de fundo, a moldura de nossa existência. Depois veio a guerra. Bem mais que as cenas da vida familiar, esses são os acontecimentos que dizem respeito ao mundo que é a substância de nossa memória. Eu digo "nossa" memória, porque eu sou quase certo que a maior parte de jovens franceses e francesas da época viveram a mesma experiência. Pesava uma verdadeira ameaça sobre nossa vida privada. É talvez a razão pela qual eu sou fascinado pela história e pela relação entre a experiência pessoal e os acontecimentos nos quais somos situados. Este é, penso, o núcleo de meus desejos teóricos.
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- Você continua fascinado por este período, mesmo que não escreva sobre ele?
- Sim, com certeza.
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- O que originou sua decisão de se tornar filósofo?
- Veja, eu não penso que eu tenha jamais tivesse o projeto de me tornar filósofo. Eu não tinha idéia do que iria fazer de minha vida. Eu acho que isso também é bem característico de pessoas de minha geração. Não sabíamos, quando tínhamos dez ou onze anos, se nos tornaríamos alemães ou continuaríamos franceses. Não sabíamos se iríamos morrer ou sobreviver aos bombardeios. Quando eu tinha dezesseis ou dezessete anos, eu sabia apenas de uma coisa: a vida na escola era um ambiente protegido das ameaças exteriores, protegido da política. E a idéia de viver protegido em um ambiente estudantil, em um meio intelectual sempre me fascinou. O saber, para mim, é isso que deve funcionar como o que protege a existência individual e o que permite compreender o mundo exterior. Eu creio que seja isso. O saber como um meio de sobreviver, graças à compreensão.
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- Você poderia dizer algumas palavras sobre seus estudos em Paris? Algo que tenha uma influencia particular sobre o trabalho que faz hoje? Ou antes algum professor para o qual você tem reconhecimento, por razões pessoais?
- Não, eu fui aluno de Althusser e, na época, as principais correntes filosóficas na França eram o marxismo, o hegelianismo e a fenomenologia. Eu as tinha estudado, claro, mas essa que me deu, pela primeira vez, o desejo de completar um trabalho pessoal foi a leitura de Nietzsche.
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- Um público não francês é, sem dúvida, pouco apto para compreender as repercussões dos acontecimentos de maio de 1968; você às vezes diz que eles tornaram as pessoas mais sensíveis a seu trabalho. Você poderia explicar por quê?
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- Eu penso que antes de maio de 1968, na França ao menos, um filósofo tinha que ser marxista, fenomenólogo, estruturalista, e eu não aderi a nenhum desses dogmas. O segundo ponto é que na época , na França, o estudo da psiquiatria ou da história da medicina não tinha, politicamente, um estatuto real. Ninguém se interessava. A primeira consequência de maio de 1986 foi o declínio do marxismo enquanto quadro dogmático e a aparição de novos interesses políticos, culturais, concernentes à vida pessoal. É a razão pela qual eu penso que meu trabalho não encontrou nenhum eco, salvo num círculo muito restrito, antes de 1968.
- Algumas das obras que você faz referência no primeiro volume de sua História da Sexualidade - penso, por exemplo, nesta narrativa da época vitoriana, My Secret Life -, tem uma longa parte sobre fantasias sexuais. É as vezes impossível distinguir a realidade da fantasia. Haveria algum valor, em sua maneira de pensar, em ligar explicitamente ao estudo das fantasias sexuais e em elaborar uma arqueologia dessas fantasias, mais que uma arqueologia da sexualidade?
- Não. Eu não tento fazer uma arqueologia das fantasias sexuais. Eu tento fazer uma arqueologia dos discursos sobre a sexualidade, isto é, no fundo, da relação entre o que fazemos, que nos é imposto, permitido e proibido fazer em matéria de sexualidade e o que nos é permitido, imposto ou proibido de dizer a respeito de nossas condutas sexuais. Este é o problema. Não é uma questão de fantasias: é um problema de verbalização.
- Você poderia explicar como chegou à idéia de que a repressão sexual que caracterizou os sécs. XVIII e XIX na Europa e na América do Norte - uma repressão ao sujeito que nos parece bem documentada historicamente - era de fato ambígua, e que haveria atrás dela, forças que agiriam em direção oposta?
- Não se trata, claro, de negar a existência desta repressão. O problema é mostrar que a repressão se inscreve sempre em uma estratégia política muito mais complexa, que visa a sexualidade. Isto não é simplesmente haver repressão. Há, na sexualidade, um grande número de prescrições imperfeitas, no interior dos quais os efeitos negativos da inibição são contrabalançados pelos efeitos positivos da estimulação. A maneira pela qual, no séc. XIX, a sexualidade foi certamente reprimida, mas também trazida à luz, acentuada, analisada por através de técnicas como a psicologia e a psiquiatria mostra claramente que não se trata de uma simples questão de repressão. Trata-se, antes, de uma mudança na economia das condutas sexuais de nossa sociedade.
- Quais são os exemplos mais marcantes que você pode citar em apoio a sua hipótese?
- Um exemplo é a masturbação das crianças. Uma outra, a histeria e toda a balbúrdia que foi feita em torno da histeria feminina. Esses dois exemplos indicam, claro, a repressão, a proibição, a interdição. Mas o fato de que a sexualidade das crianças tenha se tornado um verdadeiro problema para os pais, uma fonte de questionamento e inquietação, teve múltiplos efeitos ao mesmo tempo sobre as crianças e seus pais. Ocupar-se da sexualidade de suas crianças não era somente, para os pais, uma tarefa moral, mas também uma tarefa prazerosa.
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- Prazerosa? Em que sentido?
- No sentido de uma estimulação e de uma gratificação de natureza sexual.
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- Para os pais?
- Sim. Chame isso uma violação, se você prefere. Alguns textos são quase uma sistemática da violação - da violação pelos pais, da atividade sexual das crianças. Intervir nesta atividade íntima, secreta que é a masturbação não é algo de neutro para os pais. É não somente uma questão de poder, de autoridade, uma tarefa ética; é também um prazer. Concorda? Há, evidentemente um prazer da intervenção. A proibição severa que pesa sobre a masturbação das crianças era, naturalmente a causa dessa inquietação. Mas era também isso que favoreceu a intensificação desta prática, a masturbação recíproca e, sobre este tema, o prazer de uma comunicação secreta entre as crianças. Tudo isso deu uma forma particular à vida familiar, as relações entre pais e filhos e as relações entre as crianças mesmas. Tudo isso teve como consequência não somente a repressão, mas também uma intensificação da inquietação e dos prazeres. Minha proposta não é de dizer que os prazeres dos pais eram o mesmo que o dos filhos ou de mostrar que não há repressão. Eu tento encontrar as raízes dessa proibição absurda.
Uma das razões pelas quais essa interdição estúpida da masturbação tenha persistido durante muito tempo é devido ao prazer e à inquietude, e a toda uma rede de emoções que essa interdição suscita. Qualquer um sabe bem que é impossível de impedir que uma criança se masturbe. Não há nenhuma prova científica de que a masturbação seja nociva. Pode-se estar seguro, ao menos, que este é o único prazer que não é nocivo a ninguém. Então, por que se tem proibido a masturbação por tanto tempo? Tanto quanto eu conheça, não se encontra em toda a literatura greco-romana mais que duas ou três referências à masturbação. A masturbação não é considerada um problema. Ela passaria, na civilização grega e latina, por uma prática à qual se entregam os escravos e os sátiros. Não havia sentido nenhum em falar de masturbação para os cidadões livres.
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- Estamos em um ponto de nossa história onde o futuro é bastante incerto. A cultura popular nos fornece em abundância visões apocalípticas do futuro. Eu penso, por exemplo, no filme de Louis Malle My Dinner with André [1981]. Não é sintomático que, em um tal clima, a sexualidade e a reprodução tornem-se problemáticas e não se pode ver, neste projeto de uma história da sexualidade, um signo desse tempo?
- Não, não penso que possa estar de acordo com isso. De início a preocupação da ligação entre sexualidade e reprodução foi maior, por exemplo, nas sociedades greco-romanas e na sociedade burguesa dos sécs. XVIII e XIX. O que me surpreende é o fato de que hoje a sexualidade tenha, ao que parece, se tornado uma questão que não tem mais ligação direta com a reprodução. É a sexualidade enquanto conduta pessoal que coloca o problema, em nossos dias.
Tome a homossexualidade, por exemplo. Eu penso que uma das razões pelas quais a homossexualidade não constitui um problema importante no séc. XVIII tem a ver com a idéia de que se um homem tem filhos, o que ele possa fazer com outros não importa quase nada. No curso do séc. XIX, começa-se a ver emergir a importância do comportamento sexual na definição da individualidade. E isso é algo totalmente novo. É interessante constatar que antes do séc. XIX, os comportamentos proibidos, mesmo quando severamente julgados, eram sempre considerados como um excesso, uma libertinagem, uma forma de exagero. A conduta homossexual passava sempre por uma forma de excesso do comportamento natural, um instinto, um instinto que era difícil de confinar no interior dos limites particulares. A partir do séc. XIX, constata-se que um comportamento tal qual a homossexualidade passa por um comportamento anormal. Mas quando falo, a esse respeito, de libertinagem não quero dizer, para tanto, que ela era tolerada.
Penso que antes do séc. XIX não se encontra, ou se encontra raramente, a idéia de que os indivíduos se definissem por suas condutas ou seus desejos sexuais. "Dize-me teus desejos e eu te direi quem tu és": essa afirmação é característica do séc. XIX.
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- A sexualidade quase não parece, hoje, figurar como o grande segredo da vida. Há algo que a substitua neste sentido?
- É evidente que o sexo não é mais hoje o grande segredo da vida, pois um indivíduo pode, em nossos dias, deixar aparecer pelo menos certas formas gerais de suas preferências sexuais sem se arriscar à maldição ou à condenação. Mas penso que as pessoas consideram ainda, e são convidadas a considerar, que o desejo sexual é um índice de sua identidade profunda. A sexualidade não é mais o grande segredo, mas ela é ainda um sintoma, uma manifestação disso que há de mais secreto em nossa individualidade.
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- A questão que eu gostaria de colocar agora pode parecer, à primeira vista, estranha, mas se for o caso, eu a explicarei porque, em minha opinião, ela merece ser colocada. A beleza tem uma significação especial para você?
- Penso que ela tem uma significação para todos! Eu sou míope, certamente, mas não cego a ponto de que ela não tenha significação para mim. Mas por que você me coloca esta questão? Eu estou seguro de ter dado a você provas de que não sou insensível à beleza.
- Uma das coisas que impressionam em você é esta espécie de austeridade monástica em que você vive. Seu apartamento em Paris é quase inteiramente branco. Mal se pode encontrar nele os objetos de arte que decoram a maior parte dos apartamentos franceses. Em Toronto, nessas últimas semanas, você tem sido visto, em diversas ocasiões, ostentar trajes tão simples como uma calça branca, uma camiseta branca e uma jaqueta de couro negra. Você disse que se ama tanto o branco é porque em Poitiers nos anos trinta e quarenta as fachadas das casas nunca eram de fato brancas. Você ocupa aqui uma casa de muros brancos ornada com esculturas negras cortadas, e você disse que o ponto que você ama é a nitidez e a força do negro e o branco puros. Há também na História da sexualidade essa memorável expressão: "a austera monarquia do sexo". Você não corresponde à imagem do francês refinado que pratica a arte do bem viver. Você é também o único francês que ama dizer que prefere a cozinha americana.
- Sim, é verdade. Um bom sanduíche com coca-cola. Não há nada igual. É verdade. Com sorvete, é claro.
De fato, eu tenho dificuldade em ter a experiência do prazer. O prazer me parece ser de um controle muito difícil. Isso não é tão simples como usufruir das coisas. Eu devo confessar que é meu sonho. Eu gostaria e espero morrer de overdose de prazer, qualquer que seja. Porque eu penso que é muito difícil, e tenho sempre a impressão de não experimentar o verdadeiro prazer, o prazer completo e total; o prazer para mim está ligado à morte.
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- Por que diz isso?
- Porque o gênero de prazer que eu considero como o verdadeiro prazer seria tão profundo, tão intenso, me submergiria tanto que eu não sobreviveria. Eu morreria. Um exemplo que será ao mesmo tempo muito claro e simples: uma vez eu fui atropelado por um carro na rua. Eu caminhava. E por dois segundos talvez, eu tive a impressão de que eu estava a caminho da morte e experimentei um prazer muito, muito intenso. Fazia um tempo maravilhoso. Eram umas sete horas, uma tarde de verão. O sol começava a se por. O céu estava magnífico, azul. Deste dia fica uma de minhas melhores lembranças.
Há também o fato de que certas drogas são muito importantes para mim, porque elas me permitem ter acesso a esses prazeres terrivelmente intensos que eu busco, e que eu não seria capaz de atingir sozinho. É verdade que um copo de vinho, de bom e velho vinho, pode ser agradável. Mas isso não é para mim. Um prazer deve ser alguma coisa de incrivelmente intenso. Mas eu não penso ser o único nesse caso.
Eu não sei conceder a mim nem aos outros, esses prazeres intermediários que criam a vida cotidiana. Esses prazeres não significam nada para mim e eu não sou capaz de organizar minha vida de maneira a deixar um lugar pra eles. É a razão pela qual eu não sou nem um ser social, nem sem dúvida, no fundo, um ser cultural; e isso é o que faz de mim algo de entediante na vida cotidiana. Viver comigo, que chato!
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- Costuma-se citar a observação de Romain Rolland, segundo a qual os românticos franceses eram visuais, para os quais a musica era apenas um barulho. Mesmo que esta observação seja evidentemente um exagero, alguns estudos bem recentes apontam neste sentido. Encontra-se em muitos de seus livros numerosas referências à pintura, mas poucas à música. Você é um representante desse traço da cultura francesa que tem sublinhado Rolland?
- Sim, isto é certo. Claro, a cultura francesa não concede nenhum lugar à musica ou, se ela concede algum, é um lugar negligenciável. Mas é fato que a música desempenha um papel importante na minha vida pessoal. O primeiro amigo que tive, quando eu tinha vinte anos, era um músico. Mais tarde, eu tive um outro amigo, que era compositor que já é morto. Graças a ele eu conheço toda a geração de Boulez. Esta foi uma experiência muito importante para mim. Em primeiro lugar porque ela me colocou em contato com um tipo de arte que para mim é verdadeiramente enigmática. Eu não tive e nem tenho nenhuma competência neste assunto. Mas eu era capaz de sentir a beleza em qualquer coisa que me fosse muito enigmático. Há algumas obras de Bach e de Webern que me regozijam, mas a verdadeira beleza é para mim uma frase musical, um trecho de música que eu não compreendo, alguma coisa da qual não se possa dizer nada. Tenho essa idéia - talvez arrogante ou presunçosa - de que eu possa dizer algo sobre as grandes pinturas do mundo. E é a razão pela qual elas não são absolutamente belas. Enfim, escrevi algo sobre Boulez. Sobre a influência que teve sobre mim, o fato de viver com um músico durante muitos meses. Sobre a importância que isto teve sobre minha vida intelectual.
- Se eu entendi bem, os artistas e escritores tem, originalmente, uma reação mais positiva em consideração a seu trabalho que os filósofos, sociólogos e outros universitários.
- É verdade.
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- Há afinidades particulares entre o seu tipo de filosofia e as artes em geral?
- Eu não creio poder responder à esta questão. Veja, mesmo que eu resista em dizer, é verdade que eu não possa ser chamado de um bom acadêmico. Para mim o trabalho intelectual está ligado a isso que você define como uma forma de esteticismo - eu entendo isso como a transformação de si. Eu creio que meu problema seja esta estranha relação entre o saber, a erudição, a teoria e a história real. Sei muito bem - e creio que eu saiba desde minha infância - que o saber é impotente em transformar o mundo. Talvez eu esteja errado. E estou seguro que estou errado de um ponto de vista teórico, pois eu sei muito bem que o saber transformou o mundo.
Mas se eu me refiro à minha própria experiência, tenho o sentimento que o saber não pode nada por nós e que o poder político é capaz de nos destruir. Todo o saber do mundo não pode nada contra isso. Tudo o que eu disse se liga não a isso que eu penso teoricamente (eu sei que é falso), mas a isso que eu deduzo de minha experiência própria. Eu sei que o saber tem poder de nos transformar, que a verdade não é somente uma maneira de decifrar o mundo (talvez mesmo que isso que chamamos de verdade não decifre nada), mas que, se eu conheço a verdade, então eu serei transformado. E talvez salvo. Ou então eu morra, mas creio de todo modo, que seja a mesma coisa para mim.
É por isso, veja, que eu trabalho como um doente e que eu trabalhei como um doente toda minha vida. Eu não cuido de forma alguma do estatuto universitário disso que eu faço, porque meu problema é minha própria transformação. É a razão pela qual, quando as pessoas me dizem: "você pensa isso, há alguns anos, e agora diz outra coisa", eu respondo: "vocês acreditam que eu trabalho tanto, há tantos anos pra dizer a mesma coisa e não ser transformado?" Essa transformação de si pelo seu próprio saber é, creio, algo bem próximo da experiência estética. Para que um pintor trabalha senão para ser transformado por sua pintura?
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- Além da dimensão histórica, a História da sexualidade contem uma preocupação ética? Não estaria você no caminho de nos dizer como devemos agir?
- Não. Se você entende por "ética" um código que nos diga de que maneira devemos agir, então, claro, a História da sexualidade não é uma ética. Mas se por "ética" você entende a relação que o indivíduo tem consigo mesmo, quando age, então eu diria que ela tente a ser uma ética, ou ao menos mostrar isso que poderia ser uma ética do comportamento sexual. Essa seria uma ética não dominada pelo problema da verdade profunda que rege a realidade de nossa vida sexual. Penso que a relação que devemos ter conosco, quando fazemos amor, é uma ética do prazer, da intensificação do prazer.
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- Muitos são os que vêem em você um homem capaz de lhes dizer a verdade profunda sobre o mundo e sobre eles mesmos. Como você sente esta responsabilidade? Enquanto intelectual, você sente uma responsabilidade para com essa função de profeta, de formador de mentalidades?
- Estou bem mais certo de não dar a estas pessoas aquilo que elas esperam. Eu não me conduzo jamais como um profeta. Meus livros não dizem às pessoas o que elas devem fazer. Às vezes me repreendem por isso (e talvez tenham razão), e ao mesmo tempo me recriminam por aparecer como profeta. Escrevi um livro sobre a história da psiquiatria desde o séc. XVII até o início do séc. XIX. Neste livro eu não disse quase nada sobre a situação contemporânea da psiquiatria, e isso não impediu que as pessoas o lessem como um manifesto da antipsiquiatria. Um dia, fui convidado para um congresso sobre psiquiatria que aconteceu em Montreal. Eu não era um psiquiatra, mesmo tendo neste assunto, uma pequena experiência, uma experiência muito breve, como eu tenho dito a toda hora; de início recusei o convite. Mas os organizadores do congresso me asseguraram que me convidavam unicamente na qualidade de historiador da psiquiatria, para pronunciar o discurso de abertura. Como eu amo Quebec, fui. E lá, eu fui verdadeiramente pego, porque o presidente me apresentou como o grande representante francês da antipsiquiatria. Naturalmente, havia lá pessoas muito gentis, que nunca tinham lido uma linha sequer do que eu havia escrito e que estavam convencidas que eu era um antipsiquiatra.
Eu apenas tinha escrito a história da psiquiatria até o início do séc. XIX. Por que diabos tanta gente, inclusive psiquiatras, vêem em mim um anti-psiquiatra? Pela simples razão que eles não são capazes de aceitar a verdadeira história de suas instituições, o que, evidentemente, é o signo de que a psiquiatria é uma pseudociência. Uma verdadeira ciência é capaz de aceitar até mesmo as pequenas histórias infames de seus inícios.
Veja então até que ponto a chamada ao profeta é forte. É algo do qual, penso, temos que nos liberar. As pessoas devem elaborar sua própria ética, tomando como ponto de partida a análise histórica, a análise sociológica e toda a análise que pudermos fornecer. Eu não penso que as pessoas que tentam decifrar a verdade devam fornecer ao, mesmo tempo, no mesmo livro e através da mesma análise, princípios éticos ou conselhos práticos. Toda essa rede prescritiva deve ser elaborada e transformada pelas pessoas mesmas.
- Para um filósofo, ter sido objeto de uma reportagem da Time, como você o foi em novembro de 1981, é o indicativo de um certo tipo de popularidade [3]. O que você sente em relação a isso?
- Quando os jornalistas me pedem informações sobre meu trabalho, acho que devo lhes dar. Veja, somos pagos pela sociedade, pelos contribuintes para trabalhar. E eu penso realmente que a maior parte de nós tenta fazer o melhor trabalho possível. Eu acho que é normal, na medida do possível, apresentar e tornar acessível esse trabalho a todo mundo. Naturalmente, uma parte de nosso trabalho não pode ser acessível a todos, porque é difícil demais. A instituição à qual pertenço, na França (eu não trabalho na Universidade, mas no Collège de France), obriga a seus membros a dar conferências públicas, abertas a todos os que queiram assistir e nas quais devemos explicar nosso trabalho. Somos ao mesmo tempo pesquisadores e pessoas que devem expor publicamente nossas pesquisas. Eu penso que há, nesta velha instituição - ela data do séc XVII - algo de muito interessante. O sentido profundos é, eu creio, muito importante. Quando um jornalista vem me pedir informações sobre meu trabalho, eu tento fornecer-lhe da maneira mais clara possível.
Em todo caso, minha vida pessoal não apresenta nenhum interesse. Se alguém pensa que meu trabalho não pode ser compreendido sem referência a tal ou qual aspecto de minha vida, eu aceito considerar a questão. Sou pronto a responder se eu a vejo justificada. Na medida em que minha vida pessoal é sem interesse, não vale a pena fazer dela um segredo e pela mesma razão não vale a pena torná-la pública.
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[1] A vontade de saber, publicado em inglês em 1978.
[2] Stephen Riggins é de origem indígena.
[3] Referência a um artigo de Otto Friedrich: “France’s Philosopher of Power”, contendo o resumo de uma entrevista com Michel Foucault. Time, 118º ano, nº 20, 16 de novembro de 1981, pp. 147-148.
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*25/06/1984 - O mundo perdia Foucault.
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