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Ontem, 17/05/2008, a escritora Zélia Gattai faleceu. Fiquei feliz por ela, porque algumas vezes ficar por aqui quando se perde uma parte de si não faz sentido. Foram 56 anos ao lado de Jorge Amado, mais que uma vida, uma eternidade.
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ÉPOCA - Você conseguiu se recuperar da falta dele?
Zélia - Não. Procuro levar a vida como ele gostaria que eu a levasse: com tranqüilidade, sem me aborrecer, me ocupando. Mas sinto a falta dele.
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Trecho do livro Memorial do Amor, de Zélia Gattai.
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Despedida
Sobre nossa casa, de Jorge e minha, na rua Alagoinhas, 33, no bairro do Rio Vermelho, em Salvador da Bahia, muito já se disse, muito se cantou. Citada em prosa e verso, sobra-me, no entanto, ainda o que dela falar.
Fico pensando se alcançarei escrever todas as histórias, tantas, de gente e de bichos que nela passaram nesses quarenta anos lá vividos.
Neste momento, quando me despeço do lugar onde passei o melhor tempo de minha vida, ao deixar Jorge repousando sob a mangueira por nós plantada no jardim, mil lembranças afloram-me à cabeça. Lembro-me de coisas que para muitos podem parecer tolas, mas que para mim não são.
Lembro-me, por exemplo, de duas mimosas lagartixas que viviam atrás de um quadro de Di Cavalcanti, acima da televisão da sala, e que tanto nos divertiram. Um belo dia elas apareceram, sem mais nem menos: uma toda rosada, quase transparente; a outra com listras escuras em volta do corpo. Jorge foi logo escolhendo: 'A zebrinha é minha.' A mais bonita, pois, ficou sendo a dele. A outra, que jeito? De dona Zélia.
Recostados em nossas poltronas, após o jantar, para assistir aos noticiários de TV, vimos, pela primeira vez, as duas saírem de seu esconderijo, uma atrás da outra, direto para uma lâmpada acesa, no alto, reduto de mosquitos e de bichinhos atraídos pela luz.
— Elas agora vão jantar — disse Jorge.
Dito e feito: as duas se aproximaram docemente da claridade, estancaram a uma pequena distância da lâmpada e, imóveis, na moita, só observando. De repente, o bote fatal foi desfechado e lá se foi um dos insetos para o bucho da lagartixa de Jorge. Diante do perigo, quem era de voar voou, quem era de correr, correu, lá se foram os bichinhos, não sobrou um pra remédio, o campo ficou limpo.
Estáticas, as duas sabidas aguardaram pacientes a volta das vítimas, que, inocentes, aos poucos foram criando coragem e se chegando para, ainda uma vez, cair na boca do lobo. Ainda uma vez o lobo foi a zebrinha, que, como num passe de mágica, abocanhou um mosquito. Encantado, Jorge ria de se acabar, provocando-me: 'A tua não é de nada!' Eu protestei e ele riu mais ainda.
Brincadeira boba, inocente, passou a ser nosso divertimento durante muitas e muitas noites, muitas e muitas noites voltamos à nossa infância.
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"Quantos amaram seus momentos de radioso encanto.
Quantos amaram sua beleza com falso ou verdadeiro amor,
Mas um homem amou a alma peregrina em você,
E amou as mágoas do seu rosto cambiante"
Yeats
Comentários
E a arte, que é bom, nunca morre! Gosto de pensar que passarão outra eternidade juntos! :-)
Beijo pra ti, Anja!