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“Enquanto escrever e falar vou ter que fingir que alguém está segurando a minha mão. Oh, pelo menos no começo, só no começo. Logo que puder dispensá-la irei sozinha. Por enquanto preciso segurar esta tua mão - mesmo que não consiga inventar teu rosto e teus olhos e tua boca. Mas embora decepada, esta mão não me assusta. A invencão dela vem de tal idéia de amor como se a mão estivesse realmente ligada a um corpo que, se não vejo, é por incapacidade de amar mais. Não estou à altura de imaginar uma pessoa inteira porque não sou uma pessoa inteira."
[A Paixão Segundo G.H.]
["Adeus, vou-me embora!" de 20/04/1968 em A Descoberta do Mundo]
Obsessão, in A Bela e a Fera, Clarice Lispector
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NO ENTERRO DE CLARICE LISPECTOR, 200 PESSOAS
Publicado na Folha de S.Paulo, segunda-feira, 12 de dezembro de 1977
Duzentas pessoas compareceram ao enterro da escritora Clarice Lispector no Cemitério Comunal Israelita, no Caju (RIO). Seu corpo, velado desde sexta-feira no oratório do cemitério, foi colocado no túmulo 123, da fila G. depois de ter sido purificado por quatro mulheres da Irmandade Sagrada "Hevra Kadisha", de acordo com o ritual judaico. O caixão fechado e coberto apenas por um manto negro com uma estrela de David, bordada, foi visitado pelos escritores Rubem Braga, Fernando Sabino, Nélida Piñon e José Rubem Fonseca, além do embaixador Vasco Leitão da Cunha.
Clarice, um enterro simples.
O corpo de Clarice Lispector ficou no cemitério Comunal Israelita
Numa cerimonia simples, sem discursos, na qual a família chegou até a dispensar a presença do grão-rabino Henrique Lemle, substituido pelo cantor-mór Joseph Aronsohn, a escritora e jornalista Clarice Lispector - ela completaria anteontem 53 anos de idade - foi sepultada ontem no Cemitério Comunal Israelita, no Caju. Cerca de 200 pessoas, entre parentes e amigos, acompanharam o corpo - velado desde sexta-feira no oratório do Cemitério - até o túmulo 123, da fila G, onde ao lado, repousa o corpo do deputado Francisco Silbert Sobrinho.
Antes de ser enterrado o corpo da escritora, de acordo com o ritual judaico, foi purificado, sendo lavado, interna e externamente, por quatro mulheres da Irmandade sagrada "Havra Kadisha". No oratório, o caixão, fechado, coberto apenas por um manto negro com uma Estrela de David bordada em prateado foi visitado pelos escritores Rubem Braga, Fernando Sabino, Nélida Piñon e José Rubem Fonseca e pelo embaixador Vasco Leitão da Cunha. Nélida Piñon e José Rubem Fonseca acompanharam Clarice nos seu últimos momentos no Hospital da Lagoa, onde a escritora morreu vitimada por um câncer.
Ainda no oratório, precisamente às 11 horas, o substituto do rabino deu início à liturgia lendo, em aramaico, o Salmo 91, do Artigo Testamento, seguido de cânticos em hebraico e de uma leitura, agora em português, de alguns Salmos. Ali, antes do caixão ser conduzido à sepultura, Joseph Aronsohn ainda fez a despedida do corpo, rezando o "El Molê Rachamim". De lá o caixão seguiu até o túmulo 123, onde o filho de Clarice, Paulo Gurgel Valente (o filho Pedro não compareceu por se encontrar com o pai, o embaixador Mauri Gurgel Valente, em Montevidéu) chorou, sendo constantemente amparado pelas tias Elvira e Tânia, também escritoras.
A beira do túmulo, Joseph Aronsohn, tendo ao lado Pedro Gurgel Valente, rezou o "Kadish" - oração fúnebre -, enquanto a última homenagem a Clarice Lispector era prestada com o lançamento de três pás de terra sobre o caixão, indicando que "da terra viestes, à terra voltarás". A cerimônia foi encerrada com o substituto do rabino pedindo aos presentes que se voltassem para a direita, em direção ao Oriente, indicando o sentido de Jerusalém.
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"Será essa história um dia o meu coágulo? Que sei eu. Se há veracidade nela - e é claro que a história é verdadeira embora inventada - que cada um a reconheça em si mesmo porque todos nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro - existe a quem falte o delicado essencial."
In A Hora da Estrela, Clarice Lispector
"Quero escrever puro movimento"
Isto não é um lamento, é um grito de ave de rapina. Irisada e intranqüila. O beijo no rosto morto.
Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos, porque neles vivemos.
De repente as coisas não precisam mais fazer sentido. Satisfaço-me em ser. Tu és? Tenho certeza que sim. O não sentido das coisas me faz ter um sorriso de complacência. Decerto tudo deve estar sendo o que é.
Hoje está um dia de nada. Hoje é zero hora. Existe por acaso um número que não é nada? que é menos que zero? que começa no que nunca começou porque sempre era? e era antes de sempre? Ligo-me a esta ausência vital e rejuvenesço-me todo, ao mesmo tempo contido e total. Redondo sem início e sem fim, eu sou o ponto antes do zero e do ponto final. Do zero ao infinito vou caminhando sem parar. Mas ao mesmo tempo tudo é tão fugaz. Eu sempre fui e imediatamente não era mais. O dia corre lá fora à toa e há abismos de silêncio em mim. A sombra de minha alma é o corpo. O corpo é a sombra de minha alma. Este livro é a sombra de mim. Peço vênia para passar. Eu me sinto culpado quando não vos obedeço. Sou feliz no hora errada. Infeliz quando todos dançam. Me disseram que os aleijados se rejubilam assim como me disseram que os cegos se alegram. É que os infelizes se compensam.
Nunca a vida foi tão atual como hoje: por um triz é o futuro. Tempo para mim significa a desagregação da matéria. O apodrecimento do que é orgânico como se o tempo tivesse como um verme dentro de um fruto e fosse roubando a este fruto toda a sua polpa. O tempo não existe. O que chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas, mas o tempo em si não existe. Ou existe imutável e nele nos transladamos. O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta. Então – para que eu não seja engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa – eu cultivo um certo tédio. Degusto assim cada detestável minuto. E cultivo também o vazio silêncio da eternidade da espécie. Quero viver muitos minutos num só minuto. Quero me multiplicar para poder abranger até áreas desérticas que dão a idéia de imobilidade eterna. Na eternidade não existe o tempo. Noite e dia são contrários porque são o tempo e o tempo não se divide. De agora em diante o tempo vai ser sempre atual. Hoje é hoje. Espanto-me ao mesmo tempo desconfiado por tanto me ser dado. E amanhã eu vou Ter de novo um hoje. Há algo de dor e pungência em viver o hoje. O paroxismo da mais fina e extrema nota de violino insistente. Mas há o hábito e o hábito anestesia. O aguilhão de abelha do dia florescente de hoje. Graças a Deus, tenho o que comer. O pão nosso de cada dia.
Eu queria escrever um livro. Mas onde estão as palavras? esgotaram-se os significados. Como surdos e mudos comunicamo-nos com as mãos. Eu queria que me dessem licença para eu escrever ao som harpejado e agreste a sucata da palavra. E prescindir de ser discursivo. Assim: poluição.
Escrevo ou não escrevo?
Saber desistir. Abandonar ou não abandonar – esta é muitas vezes a questão para um jogador. A arte de abandonar não é ensinada a ninguém. E está longe de ser rara a situação angustiosa em que devo decidir se há algum sentido em prosseguir jogando. Serei capaz de abandonar nobremente? ou sou daqueles que prosseguem teimosamente esperando que aconteça alguma coisa? como, digamos, o próprio fim do mundo? ou seja lá o que for, como a minha morte súbita, hipótese que tornaria supérflua a minha desistência?
Eu não quero apostar corrida comigo mesmo. Um fato. O que é que se torna um fato? Devo-me interessar pelo acontecimento? Será que desço tanto a ponto de encher as páginas com informações sobre os "fatos"? Devo imaginar uma história ou dou largas à inspiração caótica? Tanta falsa inspiração. E quando vem a verdadeira e eu não tomo conhecimento dela? Será horrível demais querer se aproximar dentro de si mesmo do límpido eu? Sim, e é quando o eu passa a não existir mais, a não reivindicar nada, passa a fazer parte da árvore da vida – é isso que luto por alcançar. Esquecer-se de si mesmo e no entanto viver tão intensamente.
Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto - e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo da cilada das palavras: as palavras que digo escondem outras - quais? talvez as diga. Escrever é uma pedra lançada no poço fundo.
Meditação leve e terna sobre o nada. Escrevo quase que totalmente liberto de meu corpo. É como se este estivesse em levitação. Meu espírito está vazio por causa de tanta felicidade. Estou tendo uma liberdade íntima que só se compara a um cavalgar sem destino pelos campos afora. Estou livre de destino. Será o meu destino alcançar a liberdade? não há não há uma ruga no meu espírito que se espraia em leves espumas. Não estou mais acossado. Isto é a graça.
Estou ouvindo música. Debussy usa as espumas do mar morrendo na areia, refluindo e fluindo. Bach é matemático. Mozart é o divino impessoal. Chopin conta a sua vida mais íntima. Schoenberg, através de seu eu, atinge o clássico eu de todo o mundo. Beethoven é a emulsão humana em tempestade procurando o divino e só o alcançando na morte. Quanto a mim, que não peço música, só chego ao limiar da palavra nova. Sem coragem de expô-la. Meu vocabulário é triste e às vezes wagneriano-polifônico-paranóico. Escrevo muito simples e muito nu. Por isso fere. Sou uma paisagem cinzenta e azul. Elevo-me na fonte seca e na luz fria.
Quero escrever esquálido e estrutural como o resultado de esquadros, compassos e agudos ângulos de estreito enigmático triângulo.
"Escrever" existe por si mesmo? Não. É apenas o reflexo de uma coisa que pergunta. Eu trabalho com o inesperado. Escrevo como escrevo sem saber como e por quê - é por fatalidade de voz. O meu timbre sou eu. Escrever é uma indagação. É assim:?
Será que estou me traindo? será que estou desviando o curso de um rio? Tenho que ter confiança nesse rio abundante. Ou será que ponho uma barreira no curso do rio? Tento abrir as comportas, quero ver a água jorrar com ímpeto. Quero que cada frase deste livro seja um clímax.
Eu tenho que ter paciência pois os frutos serão surpreendentes...
Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres - Clarice Lispector
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À ponta do lápis o traço.
Onde expira um pensamento está uma idéia, ao derradeiro hálito de alegria uma outra alegria, à ponta da espada a magia - é para lá que eu vou.
Na ponta dos pés o salto.
Parece a história de alguém que foi e não voltou - é para lá que eu vou.
Ou não vou? Vou, sim. E volto para ver como estão as coisas. Se continuam mágicas. Realidade? eu vos espero. E para lá que eu vou.
Na ponta da palavra está a palavra. Quero usar a palavra "tertúlia" e não sei aonde e quando. À beira da tertúlia está a família. À beira da família estou eu. À beira de eu estou mim. É para mim que eu vou. E de mim saio para ver. Ver o quê? ver o que existe. Depois de morta é para a realidade que vou. Por enquanto é sonho. Sonho fatídico. Mas depois - depois tudo é real. E a alma livre procura um canto para se acomodar. Mim é um eu que anuncio.
Não sei sobre o que estou falando. Estou falando de nada. Eu sou nada. Depois de morta engrandecerei e me espalharei, e alguém dirá com amor meu nome.
É para o meu pobre nome que vou.
E de lá volto para chamar o nome do ser amado e dos filhos. Eles me responderão. Enfim terei uma resposta. Que resposta? a do amor. Amor: eu vos amo tanto. Eu amo o amor. O amor é vermelho. O ciúme é verde. Meus olhos são verdes. Mas são verdes tão escuros que na fotografia saem negros. Meu segredo é ter os olhos verdes e ninguém saber.
À extremidade de mim estou eu. Eu, implorante, eu a que necessita, a que pede, a que chora, a que se lamenta. Mas a que canta. A que diz palavras. Palavras ao vento? que importa, os ventos as trazem de novo e eu as possuo.
Eu à beira do vento. O morro dos ventos uivantes me chama. Vou, bruxa que sou. E me transmuto.
Oh, cachorro, cadê tua alma? está à beira de teu corpo? Eu estou à beira de meu corpo. E feneço lentamente.
Que estou eu a dizer? Estou dizendo amor. E à beira do amor estamos nós.
in "Onde estivestes de noite" - 7ª Ed. - Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994.
Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres.
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Um vislumbre do fim
“Uma vez eu irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma dessa vez. O espírito, eu o terei entregue à família e aos amigos com recomendações. Não será difícil cuidar dele, exige pouco, às vezes se alimenta com jornais mesmo. Não será difícil levá-lo ao cinema, quando se vai. Minha alma eu a deixarei, qualquer animal a abrigará: serão férias em outra paisagem, olhando através de qualquer janela dita da alma, qualquer janela de olhos de gato ou de cão. De tigre, eu preferiria. Meu corpo, esse serei obrigada a levar. Mas dir-lhe-ei antes: vem comigo, como única valise, segue-me como um cão. E irei à frente, sozinha, finalmente cega para os erros do mundo, até que talvez encontre no ar algum bólide que me rebente. Não é a violência que eu procuro, mas uma força ainda não classificada mas que nem por isso deixará de existir no mínimo silêncio que se locomove. Nesse instante há muito que o sangue já terá desaparecido. Não sei como explicar que, sem alma, sem espírito, e um corpo morto — serei ainda eu, horrivelmente esperta. Mas dois e dois são quatro e isso é o contrário de uma solução, é beco sem saída, puro problema enrodilhado em si. Para voltar de ‘dois e dois são quatro’ é preciso voltar, fingir saudade, encontrar o espírito entregue aos amigos, e dizer: como você engordou! Satisfeita até o gargalo pelos seres que mais amo. Estou morrendo meu espírito, sinto isso, sinto...”
Textos extraídos do livro Aprendendo a viver, Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004.
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