Seu verdadeiro nome era Jean Louis Lebris de Kerouac, mas pra quem se tornaria um dos protagonistas da beat generation, era pomposo demais.Falar de Jack Kerouac é correr o risco de misturar vida, obra e personagem. Talvez seja a melhor maneira de tentar entende-lo.O próprio Kerouac, dois anos antes de morrer, para livrar-se da "gaiola" em que o haviam posto depois do sucesso - exposição que sempre o mantivera, assim mesmo, num obtuso ostracismo -, disse numa entrevista a Paris Review: "Estou tão empenhado em entrevistar a mim mesmo em meus romances e estive sempre tão empenhado em escrever essas auto-entrevistas, que não vejo por que tive de sofrer ano após ano, nos últimos dez anos, repetindo e repetindo a quem quer que me entrevistasse o que já expliquei nos próprios livros... Não tem sentido".
Somente no segundo romance, On the road (Pé na estrada), ele alcança a eternidade. Recusado durante sete anos pelos editores antes de ser publicado em 1957, é um monumento ao amigo, retratado com o nome de Dean Moriarty. Escrito em apenas três meses e considerado sua obra-prima, encontramos aí descrita a experiência que se tornará modelo de vida para a "beat generation": a viagem, ou melhor, o nomadismo, e a aventura; a recusa da opulência americana e a clara contraposição ao mundo adulto; o jazz; a fuga no álcool e nas drogas. Na realidade, o que Kerouac faz não quer ser um protesto, mas uma busca. Numa entrevista em que lhe perguntam se a "beat generation" está em busca de alguma coisa, ele responde: "Deus. Quero que Deus me mostre seu rosto".
A vida de Jack Kerouac transcorreu sob o signo da perda e da solidão. Perda de seu irmão Gérard, morto os quatro anos de idade, e, em sua obra, símbolo da inocência, paradoxalmente projetada em Neal Cassady, delinqüente e devasso, mas que, para Jack, era um santo. Perda de sua língua natal, o dialeto franco-canadense (só foi falar inglês na escola). Na década de 1930, seu pai Leo perdeu sua gráfica e suas posses me uma inundação. Seu melhor amigo de infância, George Sampas (irmão de sua mulher Stella) morreu na guerra. É como se a inundação do rio Merrimack em 1936 fosse, simbolicamente, uma correnteza levando embora seus entes queridos, sua língua natal, seus amigos e seus laços comunitários. Sua obra foi uma tentativa de nadar contra essa correnteza, contra o Tempo. Uma viagem impossível, que o consumiu e esgotou. A correnteza acabou jogando-o na margem. A crônica de seus últimos anos é patética: sempre bêbado, dialogando com fantasmas, repetindo variações do mesmo monólogo.
Talvez por isso sua memória obsessiva ia a lugares da sua infância, às raízes da sua existência. A fuga em On the road nunca é sem volta. As grandes distâncias americanas, os pores-do-sol e as auroras irreais, o ritmo sincopado do jazz que acompanha a pessoa ao longo do caminho, os salões de bilhar, as mulheres e os encontros ocasionais são, em Kerouac, um parêntesis da precariedade que vive. De fato, escrevia num momento ardente: "Outubro é o mês mais doce. Em outubro, todos vão para casa".
E foi em outubro no dia 21, no ano de 1969, aos 47 anos, perto de sua mãe que Jack Kerouac morreu de hemorragia interna causada pela cirrose hepática. Os funerais foram realizados em Lowell, e Jack será sepultado no Edson Cemetery, o cemitério católico. Na sua cidade, sua casa, para onde apesar de todas as estradas que percorreu sempre voltou. A raiz da sua vida.
"Os jogos musculados do sexo são uma enorme seca mas Billie e eu divertimo-nos imenso enquanto fazemos amor e é por isso que conseguimos filosofar assim e estamos sempre de acordo e rimo-nos os dois numa doce nudez. "Oh querido somos os dois malucos, podíamos viver numa velha cabana de toros na montanha e não dizermos sequer uma palavra durante anos e anos, estava escrito que havíamos de encontrar-nos" - Enquanto ela diz estas e muitas outras coisas uma ideia começa a formar-se no meu espírito: "Já sei, Billie, vamos sair da Cidade e levamos o Elliott connosco para passarmos uma semana ou duas na cabana de Monsanto lá na floresta, longe de tudo" - "Ótimo, eu vou ligar já ao meu patrão e peço-lhe duas semanas de folga, Oh Jack vamos embora" - "E vai ser bom para o Elliott, poder afastar-se destes teus amigos sinistros, meu deus" - "O Perry não é sinistro". "Havemos de casar-nos, partiremos daqui e teremos uma casa de campo nas Andirondacks, e à noite jantaremos frugalmente com o Elliott à luz da lamparina" - "E eu farei sempre amor contigo" - "Mas nem sequer serás obrigada a isso porque ambos compreenderemos que somos doidos varridos... a verdade estará escrita em todas as paredes da nossa casa e mesmo que o mundo inteiro venha sujá-la com grandes manchas negras de ódio e mentira nós viveremos embriagados pela verdade" - "Bebe um café" (...).
Jack Kerouac - (in "Big Sur", 1962; tradução: Paulo Faria, Colecção Mil folhas, Lisboa, 2003)
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