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Entrevistas:
O depoimento da escritora Clarice Lispector foi gravado no dia 20 de outubro de 1976, na sede do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Atuaram como entrevistadores a jornalista e escritora Marina Colasanti; o poeta, crítico e professor Affonso Romano de Sant’Anna e o diretor do MIS, João Salgueiro. Leia abaixo trechos da entrevista .A entrevista na íntegra pode ser lida na coletânea Outros escritos (2005), da editora Rocco.

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Affonso Romano de Sant’Anna: Clarice, vamos começar com alguns dados biográficos?

Clarice Lispector: Eu nasci na Ucrânia, mas já em fuga. Meus pais pararam em uma aldeia que nem aparece no mapa, chamada Tchetchelnik, para eu nascer, e vieram para o Brasil, onde cheguei com dois meses de idade. De modo que me chamar de estrangeira é bobagem. Eu sou mais brasileira do que russa, obviamente.

Affonso Romano de Sant’Anna: As pessoas te chamam de estrangeira por causa do sotaque?

Clarice Lispector: Por causa do “erre”. Pensam que é sotaque, mas não é. É língua presa. Poderiam ter cortado, mas é muito difícil, pois é um lugar sempre úmido, então dificilmente cicatrizaria. Agora deixa ficar.

João Salgueiro: Você tem irmãos, Clarice?

Clarice Lispector: Duas irmãs: Elisa Lispector e Tânia Kaufman. Bem, aqui no Brasil fomos para o Recife... Olha, eu não sabia que era pobre, você sabe?

Marina Colasanti: Você nunca disse isso inclusive. Eu nunca li isso dito por você.

Clarice Lispector: Eu era muito pobre. Filha de imigrantes.

Affonso Romano de Sant’Anna: O que seus pais faziam na Ucrânia?

Clarice Lispector: O meu pai trabalhava na lavoura e, quando chegou ao Rio, ele foi trabalhar com representação de firmas.

Affonso Romano de Sant’Anna: Mas havia alguma formação artístico-literária na família que tivesse te levado à literatura?

Clarice Lispector: Não. Agora, no dia do casamento do meu filho, Paulo Gurgel Valente, uma meio tia minha, que estava no casamento, chegou junto a mim e me deu a melhor coisa do mundo. Ela disse: “Você sabe que sua mãe escrevia? Ela escrevia diários”.

Affonso Romano de Sant’Anna: Você tem notícia de que alguém tenha guardado esses diários?

Clarice Lispector: Não, nada. Minha mãe era paralítica e eu morria de sentimento de culpa, porque pensava que tinha provocado isso quando nasci. Mas disseram que ela já era paralítica antes... Nós éramos bastante pobres. Eu perguntei um dia desses à Elisa, que é a mais velha, se nós passamos fome e ela disse que quase. Havia em Recife, numa praça, um homem que vendia uma laranjada na qual a laranja tinha passado longe. Isso e um pedaço de pão era o nosso almoço.

Marina Colasanti: Você não tinha lembrança disso, Clarice?

Clarice Lispector: Olha, eu não tinha consciência. Eu era tão alegre que escondia de mim a dor de ver minha mãe assim... Eu era tão viva!

Affonso Romano de Sant’Anna: O lançamento do seu primeiro livro, Perto do Coração Selvagem, em 1944, causou um certo impacto na crítica brasileira.

Clarice Lispector: Virgem Maria, e se causou. Minha irmã Tânia juntou as críticas, um livro grosso desse tamanho. Eu já estava fora, estava casada...

Affonso Romano de Sant’Anna: Você já estava fora do país?

Clarice Lispector: Não, estava em Belém, no Pará. Publiquei e dez dias depois estava em Belém, quer dizer, sem contato com escritores, e boba com as críticas. Inclusive uma de Sérgio Milliet, que foi o que mudou a opinião do Álvaro Lins. Eu tinha perguntado a ele se valia a pena publicar. Ele então respondeu: “Telefone daqui a uma semana”. Aí eu telefonei e ele disse: “Olha, eu não entendi seu livro, não. Mas fala com Otto Maria Carpeaux, é capaz dele entender”. Eu não falei com ninguém e publiquei assim mesmo. O livro havia sido rejeitado pela José Olympio, e essa edição foi um arranjo com A Noite. Eu não pagava nada, mas também não ganhava: se houvesse lucro era deles.

Marina Colasanti: Você partiu para esse livro com uma estrutura de romance já visualizada ou trabalhou primeiro formando pedaços que montou num romance?

Clarice Lispector: Olha... Alguém me dá um cigarro?... Obrigada. Eu tive que descobrir meu método sozinha. Não tinha conhecidos escritores, não tinha nada. Por exemplo, de tarde no trabalho ou na faculdade, me ocorriam idéias e eu dizia: “Tá bem, amanhã de manhã eu escrevo”. Sem perceber ainda que, em mim, fundo e forma é uma coisa só. Já vem a frase feita. E assim, enquanto eu deixava “para amanhã”, continuava o desespero toda manhã diante do papel em branco. E a idéia? Não tinha mais. Então, eu resolvi tomar nota de tudo o que me ocorria. E contei ao Lúcio Cardoso, que então eu conheci, que eu estava com um montão de notas assim, separadas, para um romance. Ele disse: “Depois faz sentido, uma está ligada a outra”. Aí eu fiz. Estas folhas “soltas” deram Perto do Coração Selvagem.

Affonso Romano de Sant’Anna: O que a crítica sempre exaltou no seu trabalho é que você surgiu com um estilo pronto: não era um estilo em progresso. Em Perto do Coração Selvagem você já era Clarice Lispector e era ainda uma menininha de dezessete, dezoito anos.

Clarice Lispector: Engraçado que eu não tenha tido influências. Já estava guardado dentro de mim. Eu já tinha escrito contos antes disso.

Affonso Romano de Sant’Anna: Há uma influência que parece que você mesma reconheceu uma vez, se não de influência direta, pelo menos de leitura constante sua, que era O Lobo da Estepe, do Herman Hesse.

Clarice Lispector: Isso eu li aos treze anos. Fiquei feito doida, me deu uma febre danada, e eu comecei a escrever. Escrevi um conto que não acabava mais e que eu não sabia como fazer muito bem, então rasguei e joguei fora.

Marina Colasanti: Você rasga muita coisa?

Clarice Lispector: Agora eu aprendi a não rasgar nada. Minha empregada, por exemplo, tem ordem de deixar qualquer pedacinho de papel com alguma coisa escrita lá como está.

Marina Colasanti: E o que faz com que você escreva livros infantis esporadicamente?

Clarice Lispector: Bom, primeiro, meu filho Paulo, em Washington...

João Salgueiro: Quantos filhos você tem?

Clarice Lispector: Dois. Um está morando com o pai e o outro está casado, mora aqui no Rio, Pedro e Paulo Gurgel Valente. Quando eu estava escrevendo A Maça no Escuro, em Washington, meu filho Paulo me pediu, em inglês, — eu falava em português com ele, mas ele falava comigo em inglês — que escrevesse uma história para ele, e eu respondi: “Depois”. Mas ele disse: “Não, agora”. Então tirei o papel da máquina e escrevi O Mistério do Coelho Pensante, que é uma história real, uma coisa que ele conhecia. Aí ficou lá. Eu escrevi em inglês para que a empregada pudesse ler para ele, que nessa época não era alfabetizado ainda... Eu já perguntei a um médico se é normal ter tantas idéias ao mesmo tempo e ele me disse que todo mundo tem, por isso é que eu me perco. Eu não sei mais o que estava falando... Ah! Aí a história ficou lá. Passado um tempo, um escritor paulista, eu nem sei o nome mais, que organizava livros infantis, me perguntou se eu tinha algum. Eu disse que não. De repente me lembrei que tinha a história do coelho e que era só traduzir para o português, o que eu mesma fiz.

João Salgueiro: Clarice, vamos fazer uma cronologia da sua obra: seu primeiro livro foi Perto do Coração Selvagem, em 1944; a seguir veio O Lustre, que já estava até escrito, mas só foi publicado em 1946; depois A Cidade Sitiada, em 1949.

Clarice Lispector: A Cidade Sitiada foi, inclusive, um dos meus livros mais difíceis de escrever porque exigiu uma exegese que eu não sou capaz de fazer. É um livro denso, fechado. Eu estava perseguindo uma coisa e não tinha quem dissesse o que era. San Thiago Dantas abriu o livro, leu e pensou: “Coitada da Clarice, caiu muito”. Dois meses depois, ele me contou que, ao ir dormir, quis ler alguma coisa e o pegou. Então ele me disse: “É o seu melhor livro”.

Affonso Romano de Sant’Anna: Qual foi a motivação que te levou a escrever esse livro.

Clarice Lispector: É a formação de uma cidade, a formação de um ser humano dentro de uma cidade. Um subúrbio crescendo, um subúrbio com cavalos, tudo tão vital... Construíram uma ponte, construíram tudo e de modo que já não era subúrbio. Então o personagem dá o fora.

Affonso Romano de Sant’Anna: Como foi o processo de criação desse livro? Você partiu de uma idéia determinada ou foi juntando textos também?

Clarice Lispector: Foi tudo meio cegamente... Eu elaboro muito insconscientemente. Ás vezes pensam que eu não estou fazendo nada. Estou sentada numa cadeira e fico. Nem eu mesma sei que estou fazendo alguma coisa. De repente vem uma frase...

Marina Colasanti: Inclusive você tem um tempo físico de aquecimento, não é? Uma vez você me disse que acorda muito cedo de manhã, praticamente de madrugada, e não vai logo escrever. Fica andando pela casa, tomando café.

Clarice Lispector: É isso sim. Fico olhando, bobando...

Marina Colasanti: Fazendo um cooper literário interior... (risos)

Clarice Lispector: Depois de A Cidade Sitiada veio A Maçã no Escuro, que foi escrito... Foi engraçado, porque eu escrevi por duas vezes dois livros ao mesmo tempo. Laços de Família e A Maçã no Escuro foram escritos ao mesmo tempo. Eu ia para um conto, escrevia e voltava para A Maçã no Escuro. Mais tarde, isso aconteceu de novo com um livro que não é grande coisa: Onde Estivestes de Noite? e não me lembro qual outro, que eu escrevi também ao mesmo tempo.

Affonso Romano de Sant’Anna: Foi A Via Crucis do Corpo?

Clarice Lispector: Não foi, não.

Affonso Romano de Sant’Anna: A Maçã no Escuro sempre me impressionou muito. Aliás, dos seus livros foi o que mais me impressionou. Lembro que em 1960 ou 61, em torno disso, você foi a Belo Horizonte para uma tarde de autógrafos. Eu tinha publicado um livro de ensaios, ainda como estudante de letras, e tinha um ensaio sobre ele. E lá eu, jovialmente, insistia com você sobre as raízes do livro. Porque eu achava o livro tão bem estruturado no sentido de...

Clarice Lispector: Foi o único livro bem estruturado que eu escrevi, eu acho. Se bem que não: Água Viva segue o mesmo curso.

Affonso Romano de Sant’Anna: Exato. Era como se você tivesse estudado, até profundamente, uma série de assuntos sobre linguagem, uma série de informações contextuais que são importantes. Eu lembro de que você tinha me dito que não, que tinha escrito tudo num certo jato bastante individual de produção.

Clarice Lispector: É. Eu não estou muito a par das escolas e tudo, não.

Affonso Romano de Sant’Anna: Entre Ermelinda e Vitória, dentro de A Maçã no Escuro, qual é mais Clarice?

Clarice Lispector: Talvez Ermelinda, porque ela era frágil e medrosa. Vitória era uma mulher que eu não sou... Eu sou o Martim.

Affonso Romano de Sant’Anna: Exatamente. Teu livro na verdade é uma grande parábola. É uma parábola do indivíduo em busca da consciência, em busca de sua linguagem.

Clarice Lispector: Se fazendo. Tanto que a primeira parte se chama “Como nasce o mundo”. A segunda é “O nascimento do herói”, porque já era homem e queria ser herói. E a terceira é “A maçã no escuro”.

Affonso Romano de Sant’Anna: Você sabia que a Clarice é uma tremenda bruxa? (risos)
Clarice Lispector: Ah, isso foi um crítico, não me lembro de que país latino-americano, que disse que eu usava as palavras não como escritora, mas como bruxa. Daí talvez o convite para participar do Congresso de Bruxaria da Colômbia. Me convidaram e eu fui.

Marina Colasanti: A única bruxa brasileira. (risos)

Affonso Romano de Sant’Anna: Mas conte sobre as suas relações com a bruxaria, Clarice. Se você tivesse que introduzir o leitor nestes mistérios, quais seriam os dados?

Clarice Lispector: Não tem, não tem!

João Salgueiro: A idéia de bruxaria nasceu do crítico, e você não a desenvolveu?

Clarice Lispector: Nada, nada. Foi inconseqüente, inclusive estranhei o clima em Bogotá, na Colômbia. Tinha dores de cabeça, e, um dia, me tranquei no quarto, fiquei sozinha. Não atendia telefone, só chamava para comida e bebida. Estava achando tudo muito enjoado. Eu enjôo muito facilmente das coisas...

Affonso Romano de Sant’Anna: Como é que foi a sua apresentação lá?

Clarice Lispector: Disseram que queriam um texto meu. Eu não sabia fazer um texto sobre bruxaria porque não sou bruxa, não é? Então, traduzi para o inglês O Ovo e a Galinha. Aí eu pedi a um fulano de tal, que eu não me lembro o nome, para ler. Ele tinha a tradução espanhola. A maior parte das pessoas não sabe o que foi lido, não entendeu nada. Agora, um americano ficou tão alucinado que me pediu uma cópia daquele conto
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Entrevista com Lygia Fagundes Telles:
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Você sabe o que uma famosa escritora disse para a outra? Se não sabe, leia o que Clarice Lispector perguntou e Lygia Fagundes Telles respondeu. Mas o final dessa conversa poderá ser na Academia.
Eu pretendia ir a São Paulo para entrevistar Lygia Fagundes Telles, pois valia a pena a viagem. Mas acontece que ela veio ao Rio para lançar seu novo livro, Seminário dos ratos. Entre parênteses, já comecei a ler e me parece de ótima qualidade. O fato dela vir ao Rio, o que me facilitaria as coisas, combina com Lígia: ela nunca dificulta nada. Conheço a Lygia desde o começo do sempre. Pois não me lembro de ter sido apresentada a ela. Nós nos adoramos. As nossas conversas são francas e as mais variadas. Ora se fala em livros, ora se fala sobre maquilagem e moda, não temos preconceitos. Às vezes se fala em homens.

Lygia é um best-seller no melhor sentido da palavra. Seus livros simplesmente são comprados por todo o mundo. O jeito dela escrever é genuíno pois se parece com o seu modo de agir na vida. O estilo e Lygia são muito sensíveis, muito captadores do que está no ar, muito femininos e cheios de delicadeza. Antes de começar a entrevista, quero lembrar que na língua portuguesa, ao contrário de muitas outras línguas, usam-se poetas e poetisas, autor e autora. Poetisa, por exemplo, ridiculariza a mulher-poeta. Com Lygia, há o hábito de se escrever que ela é uma das melhores contistas do Brasil. Mas do jeitinho como escrevem parece que é só entre as mulheres escritoras que ela é boa. Erro. Lygia é também entre os homens escritores um dos escritores maiores. Sabe-se também que recebeu na França (com um conto seu, num concurso a que concorreram muitos escritores da Europa) um prêmio. De modo que falemos dela como ótimo autor. Lygia ainda por cima é bonita.
Comecemos pois:
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– Como nasce um conto? Um romance? Qual é a raiz de um texto seu?
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– São perguntas que ouço com freqüência. Procuro então simplificar essa matéria que nada tem de simples. Lembro que algumas idéias podem nascer de uma simples imagem. Ou de uma frase que se ouve por acaso. A idéia do enredo pode ainda se originar de um sonho. Tentativa vã de explicar o inexplicável, de esclarecer o que não pode ser esclarecido no ato da criação. A gente exagera, inventa uma transparência que não existe porque – no fundo sabemos disso perfeitamente – tudo é sombra. Mistério. O artista é um visionário. Um vidente. Tem passe livre no tempo que ele percorre de alto a baixo em seu trapézio voador que avança e recua no espaço: tanta luta, tanto empenho que não exclui a disciplina. A paciência. A vontade do escritor de se comunicar com o seu próximo, de seduzir esse público que olha e julga. Vontade de ser amado. De permanecer. Nesse jogo ele acaba por arriscar tudo. Vale o risco? Vale se a vocação for cumprida com amor, é preciso se apaixonar pelo ofício, ser feliz nesse ofício. Se em outros aspectos as coisas falham (tantas falham) que ao menos fique a alegria de criar.

– Para mim a arte é uma busca, você concorda?
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– Sim, a arte é uma busca e a marca constante dessa busca é a insatisfação. Na hora em que o artista botar a coroa de louros na cabeça e disser, estou satisfeito, nessa hora mesmo ele morreu como artista. Ou já estava morto antes. É preciso pesquisar, se aventurar por novos caminhos, desconfiar da facilidade com que as palavras se oferecem. Aos jovens que desprezam o estilo, que não trabalham em cima do texto porque acham que logo no primeiro rascunho já está ótimo, tudo bem – a esses recomendo a lição maior que está inteira resumida nestes versos de Carlos Drummond de Andrade:
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Chega mais perto e contempla as palavras
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta
pobre ou terrível que lhe deres
Trouxeste a chave?
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– Você, Clarice, que é dona de um dos mais belos estilos da nossa língua, você sabe perfeitamente que apoderar-se dessa chave não é assim simples. Nem fácil, há tantas chaves falsas. E essa é uma fechadura toda cheia de segredos. De ambigüidades.
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– Fale-nos do Seminário dos ratos.

– Procurei uma renovação de linguagem em cada conto desse meu livro, quis dar um tratamento adequado a cada idéia: um conto pode dar assim a impressão de ser um mero retrato que se vê e em seguida esquece. Mas ninguém vai esquecer esse conto-retrato se nesse retrato houver algo mais além da imagem estática. O retrato de uma árvore é o retrato de uma árvore. Contudo, se a gente sentir que há alguém atrás dessa árvore, que detrás dela alguma coisa está acontecendo ou vai acontecer, se a gente sentir, intuir que na aparente imobilidade está a vida palpitando no chão de insetos, ervas – então esse será um retrato inesquecível. O escritor – ai de nós – quer ser lembrado através do seu texto. E a memória do leitor é tão fraca. Leitor brasileiro, então, tem uma memória fragilíssima, tão inconstante. O padre Luís (um padre santo que fez a minha primeira comunhão, foi ele quem me apresentou a Deus) me contou que um dia conduziu uma procissão no Rio. A procissão saía de uma igreja do Posto Um, dava uma volta por Copacabana e retornava em seguida. Muita gente, todo mundo cantando, velas acesas. Mas à medida que a procissão ia avançando, os fiéis iam ficando pelas esquinas, tantos botequins, tantos cafés. E o mar? Quando finalmente voltou à igreja, ele olhou para trás e viu que restara uma meia dúzia de velhos. E os que carregavam os andores. “As pessoas são muito volúveis”, concluiu padre Luís. Em outros termos, o mesmo diria Garrincha quando um mês depois de ser carregado nos ombros por uma multidão delirante, com o mesmo fervor e no mesmo estádio foi fragorosamente vaiado. Tão volúveis...
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– Isso não é pessimismo?
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– Não sou pessimista, o pessimista é um mal-humorado. E graças a Deus conservo o meu humor, sei rir de mim mesma. E (mais discretamente) do meu próximo que se envaidece com essas coisas, do próximo que enche o peito de ar, abre o leque da cauda e vai por aí, duro de vaidade. De certeza, tantas medalhas, tantas pompas e glórias, eu ficarei ! Não fica nada. Ou melhor, pode ser que fique, mas o número dos que não deixaram nem a poeira é tão impressionante que seria inocência demais não desconfiar. Sou paulista, e como o mineiro, o paulista é meio desconfiado. Então, o certo é dizer com Millôr Fernandes: “quero ser amado em Ipanema, agora, agora”. Em Ipanema vou lançar esse Seminário dos ratos. O que já é alguma coisa...
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– Como nasceu esse título?
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– Houve em São Paulo um seminário contra roedores. Lá acontecem diariamente dezenas de seminários sobre tantos temas, esse era contra os ratos. “Daqui por diante eles estarão sob controle”, anunciou um dos organizadores, e o público caiu na gargalhada, porque nessa hora exata um rato atravessou o palco. Tantos projetos fabulosos, tantas promessas. Discursos e discursos com pequenos intervalos para os coquetéis. Palavras, palavras. E de repente pensei numa inversão de papéis, ou seja, nos ratos expulsando todos e se instalando soberanos no seminário. “Que século, meu Deus”, exclamariam repetindo o poeta. E continuariam a roer o edifício. Assim nasceu esse conto.
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– Quais são os temas do livro?
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– São quatorze textos que giram em torno de temas que me envolvem desde que comecei a escrever: a solidão, o amor e o desamor. O medo. A loucura. A morte – tudo isso que aí está em redor. E em nós. Quando fico deprimida vejo claramente essas três espécies em extinção: o índio, a árvore e o escritor. Mas reajo, não sei tra- balhar sem a esperança no coração. Sou de Áries, recebo a energia do sol. E de Deus, o que vem a dar no mesmo, tenho paixão por Deus.
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– Há muita gente louca no Seminário dos ratos?
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– Sim, há um razoável número de loucos nesse meu livro e também nos outros. Mas a loucura não anda mesmo por aí galopante? “Os homens são tão necessariamente loucos que não ser louco representaria uma outra forma de loucura”, disse Pascal.
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– O que mais lhe perguntam?
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– Eis o que me perguntam sempre: compensa escrever? Economicamente, não. Mas compensa – e tanto – por outro lado através do meu trabalho fiz verdadeiros amigos. E o estímulo do leitor? E daí? “As glórias que vêm tarde já vêm frias”, escreveu o Dirceu de Marília. Me leia enquanto estou quente.
Leia mais aqui.
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continua...

Comentários

Imeli disse…
Muito obrigada por copiar aqui parte do depoimento da Clarice ao Museu da Imagem e do Som. Você tem o áudio do depoimento?
Imeli disse…
Obrigada por postar o depoimento da Clarice ao MIS. você tem o áudio desse depoimento?

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