Os dias escuros - Carlos Drummond de Andrade
A atualidade desse texto de 1966 é incrível. A história não muda quando nada é mudado, apenas se repete.
Imagem das chuvas
em 1966 (Fonte:reprodução/jorwiki.usp.br)
‘Os
dias escuros’, por Drummond
Texto
publicado no extinto jornal 'Correio da Manhã' no dia 14 de janeiro de 1966 - por Carlos
Drummond de Andrade
Amanheceu
um dia sem luz — mais um — e há um grande silêncio na rua. Chego à janela e não
vejo as figuras habituais dos primeiros trabalhadores. A cidade, ensopada de
chuva, parece que desistiu de viver. Só a chuva mantém constante seu movimento
entre monótono e nervoso. É hora de escrever, e não sinto a menor vontade de
fazê-lo. Não que falte assunto. O assunto aí está, molhando, ensopando os
morros, as casas, as pistas, as pessoas, a alma de todos nós. Barracos que se
desmancham como armações de baralho e, por baixo de seus restos, mortos,
mortos, mortos. Sobreviventes mariscando na lama, à pesquisa de mortos e de
pobres objetos amassados. Depósito de gente no chão das escolas, e toda essa
gente precisando de colchão, roupa de corpo, comida, medicamento. O calhau
solto que fez parar a adutora. Ruas que deixam de ser ruas, porque não dão mais
passagem. Carros submersos, aviões e ônibus interestaduais paralisados, corrida
a mercearias e supermercados como em dia de revolução. O desabamento que acaba
de acontecer e os desabamentos programados para daqui a poucos instantes.
Este,
o Rio que tenho diante dos olhos, e, se não saio à rua, nem por isso a imagem é
menos ostensiva, pois a televisão traz para dentro de casa a variada pungência
de seus horrores.
No dia escuro, de más notícias esvoaçando, com a esperança de milhões de seres posta num raio de sol que teima em não romper, não há alegria para a crônica, nem lhe resta outro sentido senão o triste registro da fragilidade imensa da rica, poderosa e martirizada cidade do Rio de Janeiro.
Comentários