Clarice Lispector - Biografia
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Com 648 páginas, "Clarice," chegou às livrarias brasileiras. A editora Cosac Naify colocou uma tiragem de 10 mil exemplares. Em geral, um livro começa com 3.000 cópias.
Escrita pelo jornalista norte-americano Benjamin Moser e publicada nos Estados Unidos em agosto de 2009, a biografia de Clarice Lispector (1920-1977) conquistou um destaque a que a literatura brasileira não está acostumada.
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Biografia inclui vírgula em título, referência ao estilo da escritora, atormentada pelo estupro da mãe, filho doente e amor por um gay.
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No livro, o autor detalha episódios dramáticos da vida da escritora, como o estupro de sua mãe na Ucrânia por soldados russos, a esquizofrenia do filho Pedro e a homossexualidade do seu primeiro amor, o romancista e poeta mineiro Lúcio Cardoso (1913-1968).
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Na página 158, o livro aborda a angústia de Lúcio em relação a sua homossexualidade. Francisco de Assis Barbosa, colega de Clarice, dizia para ela: "Ele nunca vai casar com você, é homossexual". A escritora replicou: "Mas eu vou salvá-lo. Ele vai gostar de mim."
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Com base em pesquisa, o autor formulou uma tese: a de que Clarice sentia-se predestinada a salvar a mãe da doença adquirida (sífilis) durante a violência na Ucrânia. O peso dessa falha -- mãe Mania passou o final da vida inválida e morreria ainda jovem-- ecoaria ao longo de toda sua vida e obra. Para o autor, compreender a dor de Clarice como filha e como mãe ajuda a entender a escritora.
Com base em pesquisa, o autor formulou uma tese: a de que Clarice sentia-se predestinada a salvar a mãe da doença adquirida (sífilis) durante a violência na Ucrânia. O peso dessa falha -- mãe Mania passou o final da vida inválida e morreria ainda jovem-- ecoaria ao longo de toda sua vida e obra. Para o autor, compreender a dor de Clarice como filha e como mãe ajuda a entender a escritora.
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Em 1946, a jovem escritora brasileira Clarice Lispector retornava do Rio de Janeiro para a Itália, onde seu marido servia como vice-cônsul em Nápoles. Ela viajara ao Brasil como mensageira diplomática, levando despachos para o ministro brasileiro das Relações Exteriores, mas com as rotas habituais entre a Europa e a América do Sul bloqueadas em função da guerra, sua viagem ao reencontro do marido seguia um itinerário nada convencional.
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Do Rio ela voou para Natal, dali para a base britânica na ilha Ascensão, no Atlântico Sul, em seguida para a base aérea norte-americana na Libéria, dali para as bases francesas em Rabat e Casablanca, e por fim para Roma, via Cairo e Atenas. Antes de cada etapa ela teve algumas horas, ou dias, para espiar ao redor.
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No Cairo o cônsul brasileiro e sua esposa a convidaram para ir com eles a um cabaré, onde ficaram maravilhados com a exótica dança do ventre executada ao som da familiar melodia do sucesso do carnaval carioca de 1937: "Mamãe eu quero", na voz de Carmen Miranda.
O Egito não a impressionou, conforme escreveu ao amigo Fernando Sabino:
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"Vi as pirâmides, a esfinge - um maometano leu minha sorte nas "areias do deserto" e disse que eu tinha coração puro... [...]. Falar em esfinge, em pirâmides, em piastras, tudo isso é de um mau gosto horrível. É quase uma falta de pudor viver no Cairo. O problema é sentir alguma coisa que não esteja prevista num guia."
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Livro aborda origem judaica de Lispector, que nasceu na Ucrânia
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Leia mais aqui.
Clarice Lispector nunca voltou ao Egito. Mas, muitos anos depois, relembrou sua breve excursão turística, quando, nas "areias do deserto", encarou desafiadoramente ninguém menos que a própria Esfinge. "Não a decifrei", escreveu a orgulhosa e bela Clarice. "Mas ela também não me decifrou."
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Quando morreu, em 1977, Clarice Lispector era uma das figuras míticas do Brasil, a Esfinge do Rio de Janeiro, uma mulher que fascinava os brasileiros praticamente desde a adolescência. "Ao vê-la, levei um choque", disse o poeta Ferreira Gullar, relembrando o primeiro encontro entre os dois.
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"Seus olhos amendoados e verdes, as maçãs do rosto salientes, ela parecia uma loba - uma loba fascinante. [...] Imaginei que, se voltasse a vê-la, iria me apaixonar por ela."3 "Há homens que nem em dez anos me esqueceram", admitiu Clarice.
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"Há o poeta americano que ameaçou suicidar-se porque eu não correspondia..."
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O tradutor Gregory Rabassa recordava ter ficado "pasmo ao encontrar aquela pessoa rara, que era parecida com Marlene Dietrich e escrevia como Virginia Woolf".
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No Brasil de hoje seu rosto sedutor adorna selos postais. Seu nome empresta classe a condomínios de luxo. Suas obras, muitas vezes rejeitadas como herméticas ou incompreensíveis quando ela era viva, são vendidas em distribuidores automáticos em estações de metrô. Na internet fervilham centenas de milhares de seus fãs, e é raro passar um mês sem que surja um livro examinando um ou outro aspecto de sua vida e obra. Basta o primeiro nome para identificá-la entre brasileiros instruídos, todos os quais, conforme notou uma editora espanhola, "conheceram-na, estiveram na sua casa e têm a contar alguma anedota a respeito dela, como os argentinos com Borges. Ou no mínimo foram ao enterro dela".
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A escritora francesa Hélène Cixous declarou que Clarice Lispector era o que Kafka teria sido se fosse mulher, ou "se Rilke fosse uma judia brasileira nascida na Ucrânia. Se Rimbaud fosse mãe, se tivesse chegado aos cinquenta. Se Heidegger deixasse de ser alemão". As tentativas de descrever essa mulher indescritível volta e meia seguem essa linha, recorrendo aos superlativos, embora aqueles que a conheceram, em pessoa ou por seus livros, também insistam que o aspecto mais notável de sua personalidade, sua aura de mistério, escapa a toda descrição. "Clarice", escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade quando ela morreu, "veio de um mistério, partiu para outro." Seu ar indecifrável fascinava e inquietava todos os que a encontravam. Depois de sua morte, um amigo escreveu que Clarice era uma estrangeira. Não porque nasceu na Ucrânia. Criada desde menininha no Brasil, era tão brasileira quanto não importa quem. Clarice era estrangeira na terra. Dava a impressão de andar no mundo como quem desembarca de noitinha numa cidade desconhecida onde há greve geral de transportes.
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"Talvez seus amigos mais íntimos e os amigos desses amigos saibam alguma coisa sobre a sua vida", escreveu um entrevistador em 1961. "De onde veio, onde nasceu, quantos anos tem, como vive. Mas ela não fala nunca sobre isso, 'pois é uma parte muito pessoal'." Ela deixava escapar pouquíssima coisa. Uma década depois, outro jornalista, frustrado, resumiu as respostas de Clarice a uma entrevista: "Não sei, não conheço, não ouvi dizer, não entendo do assunto, não é do meu domínio, é difícil explicar, não sei, não me considero, não ouvi, desconheço, não há, não creio".
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No ano anterior ao de sua morte, uma repórter que viera da Argentina tentou fazê-la se abrir. "Dizem que a senhora é evasiva, difícil, que não gosta - entre tantos assuntos possíveis - a nova capital, Brasília, aparece uma exclamação inesperada: "O monstro sagrado morreu: em seu lugar nasceu uma menina que era órfã de mãe.
"Fatos e pormenores me aborrecem", escreveu, presumivelmente incluindo os que envolviam seu próprio currículo. Ela fez o possível, na vida e na escrita, para apagá-los. Por outro lado, porém, poucas pessoas se expuseram tão completamente. Através das muitas facetas de sua obra - em romances, contos, cartas e textos jornalísticos, na esplêndida prosa - uma personalidade única é dissecada sem descanso e revelada de modo fascinante naquela que é talvez a maior autobiografia espiritual do século xx.
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"Lado a lado com o desejo de defender a própria intimidade, há o desejo intenso de me confessar em público e não a um padre." Seu tipo de confissão dizia respeito às verdades interiores que ela desvelou com esmero ao longo de uma vida de incessante meditação. É por esse motivo que Clarice Lispector sempre foi comparada mais com místicos e santos e menos com outros escritores. "Os romances de Clarice Lispector frequentemente nos fazem pensar na autobiografia de Santa Teresa", escreveu Le Monde.
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Ela emergiu do mundo dos judeus da Europa Oriental, um mundo de homens santos e milagres que já havia experimentado seus primeiros anúncios de danação. Trouxe a ardente vocação religiosa daquela sociedade agonizante para um novo mundo, um mundo em que Deus estava morto.
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Como Kafka, ela se desesperou; mas, à diferença de Kafka, acabou, de modo atormentado, bracejando em busca do Deus que a abandonara. Narrou sua busca em termos que, como os de Kafka, apontavam necessariamente para o mundo que ela deixara para trás, descrevendo a alma de uma mística judaica que sabe que Deus está morto, mas que, no tipo de paradoxo que perpassa toda a sua obra, está determinada a encontrá-Lo mesmo assim.
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A alma exposta em sua obra é a alma de uma mulher só, mas dentro dela encontramos toda a gama da experiência humana. Eis por que Clarice Lispector já foi descrita como quase tudo: nativa e estrangeira, judia e cristã, bruxa e santa, homem e lésbica, criança e adulta, animal e pessoa, mulher e dona de casa. Por ter descrito tanto de sua experiência íntima, ela podia ser convincentemente tudo para todo mundo, venerada por aqueles que encontravam em seu gênio expressivo um espelho da própria alma. Como ela disse, "eu sou vós mesmos".
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"Muita coisa não posso te contar. Não vou ser autobiográfica. Quero ser 'bio'." Mas mesmo um artista universal emerge de um contexto específico, e o contexto que produziu Clarice Lispector era inimaginável para a maioria dos brasileiros - ao menos, certamente, para seus leitores de classe média. Não admira que nunca falasse sobre ele. As raízes de Clarice, nascida a milhares de quilômetros do Brasil, em meio a uma horripilante guerra civil, com a mãe condenada à morte por um ato de indizível violência, eram inconcebivelmente pobres e brutais.
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Ao chegar à adolescência ela parecia haver triunfado sobre suas origens, e pelo resto da vida evitou até mesmo a mais vaga menção a elas. Temia, talvez, que ninguém compreendesse. E assim fechou a boca, como um "monumento", um "monstro sagrado", amarrada a uma lenda que ela sabia que sobreviveria a ela, e que ela própria, de modo relutante e irônico, abraçou. Vinte e oito anos depois de seu primeiro encontro com a Esfinge, escreveu que estava pensando em fazer outra visita: "Vou ver quem devora quem."
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"Clarice,"
Autor: Benjamin Moser
Editora: Cosac Naify
Páginas: 648
Quanto: R$ 79
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha
.Leia mais aqui.
Comentários
Abraço de arte.
Não obstante a minha implicância com o uso comercial do "espírito natalino", não tenho como escapar da influência que a data exerce sobre o meu emocional que ainda teima em crer que a humanidade não é caso perdido e que podemos construir um mundo mais justo, sem violências e sem preconceitos. Em suma: sou um ingênuo assumido.
Sendo assim, é inevitável que venha para deixar os meus votos sinceros de que você tenha um feliz natal e que o ano novo não seja apenas uma nova página no calendário, mais um marco de mudança que inaugure uma nova era de paz e felicidades para todos e que possamos realizar todos os nossos melhores sonhos e projetos.
Felicidades.
Beijos
Contraì o texto.
www.gastronomiaefotografia.blogspot.com
Se possível de uma passada lá!
Atenciosamente
Tati
Saudações
...E percebo agora o quanto sou ignorante de Clarice Lispector. Que me adiantou conhecer seus textos sem entender de onde ela teria vindo?!
Crítica perfeita sobre a biografia. Gerou-me ânsias de adquirí-la, e o farei.
Parabéns pelo blog! Textos incríveis. Sensibilidade impecável!
Até mais e oa semana!
Amo Lispector, CFA, Bandeira entre outros citados aqui... gostei muito desse:
Ardendo de amor, as cigarras
cantam: mais belos porém são
os pirilampos, cujo mudo amor
lhes queima o corpo!
Canções de camponeses do Japão
Adorei o seu blog, cheguei aqui procurando fotos da Annie Leibovitz... rs
Eu tenho um blog, que não chega a riqueza do seu, mas é muito "eu" rs não precisa comentar, mas se te interessas, passa lá.
http://karynkrauthein.wordpress.com
Um beijo.