Mutações
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Nasci num pequeno hospital de Tóquio.
Mamãe diz que se lembra de duas coisas: um ratinho correndo pelo chão, o que ela considerou sinal de sorte.
Uma enfermeira curvando-se e murmurando, em tom de quem pede desculpas: "Infelizmente, é uma menina. A senhora prefere informar pessoalmente seu marido?".
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Estou aqui, sentada, com os pensamentos me conduzindo pelo mundo afora e para dentro de mim mesma, enquanto tento registrar no papel essa viagem.

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Quero escrever sobre o amor - sobre o ser humano - sobre solidão - sobre a existência de uma mulher.

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Quero escrever sobre um encontro, numa ilha. Um homem que mudou minha vida.

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Quero escrever sobre uma mutação que foi acidental e uma outra, deliberada.

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Quero escrever sobre momentos que considero dádivas, bons e maus momentos.

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Não creio que minha parcela de conhecimento ou de experiência seja maior do que a de qualquer outra pessoa.

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Realizei um sonho - e tive mais dez, em lugar dele. Vi o outro lado de uma coisa cintilante.

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Não escrevo a respeito da Liv Ullmann que as pessoas encontram nas revistas e nos jornais. Alguns podem pensar que omiti fatos importantes sobre minha vida, mas nunca tive intenção de escrever uma autobiografia.

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Minha profissão requer uma exibição diária de corpo, rosto e emoções. Ironicamente, agora sinto que estou com medo de me revelar. Medo de que, pondo as coisas no papel, eu fique vulnerável e não seja mais capaz de me defender.

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Sinto a tentação de fantasiar, fazer com que eu mesma e meu ambiente pareçam agradáveis, a fim de conquistar a simpatia do leitor. Ou de dramatizar as coisas para torná-las mais excitantes.

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É como se eu não estivesse convencida de que a realidade em si tem algum interesse.
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"Existe uma menina em mim que se recusa a morrer", escreveu a autora dinamarquesa Tove Ditlevsen.

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Eu vivo, me alegro, sofro, e estou sempre lutando para me tornar adulta. Mas todos os dias, porque alguma coisa que eu faço a afeta, ouço a voz da menina, lá dentro de mim. Ela, que há tantos anos era eu. Ou quem eu pensava que fosse.

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A voz é ansiosa, quase sempre de protesto, embora algumas vezes débil, e cheia de expectativa e angústia. Não quero prestar atenção nela, porque nada tem a ver com minha vida adulta. Mas a voz me deixa insegura.

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Às vezes, acordo com vontade de viver a sua vida, assumir um papel diferente daquele que é meu cotidiano. Eu me aconchego à minha filha ainda adormecida, sinto sua respiração cálida e tranqüila e tenho a esperança de que, por meio dela, possa tornar-me o que desejei ser.

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Examinando, retrospectivamente, o que lembro dos meus sonhos de infância, vejo que se parecem com muitos que ainda tenho, mas não vivo mais como se fossem parte da realidade.

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Ela que está em mim e "se recusa a morrer" ainda espera algo diferente. Nenhum sucesso a satisfaz, nenhuma felicidade a acalma.

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O tempo todo estou tentando modificar-me. Pois sei que existem outras coisas bem diferentes daquelas que conheci. Gostaria de caminhar para isso. Encontrar a paz, de maneira a poder parar e escutar o que está dentro de mim, sem nenhuma influência.
Trecho do Livro "Mutações" - Liv Ullmann
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Liv Ullmann
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Mutações reflete uma mulher extremamente sensível, um tanto introspectiva, às vezes frágil, em outras muito forte. O livro é todo costurado com frases curtas e simples, espontâneas, bem sinceras, com momentos espirituosos - parecem saídas de um blog antes do tempo.
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O livro só surgiu porque Liv mentiu a um jornalista. Desempregada, não quis assumir que não estava fazendo nada, e disse que estava escrevendo.
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Ela fala de amores e separações, da filha que teve com o cineasta Ingmar Bergman, com quem viveu por 5 anos, e comenta bastante das aflições e recompensas da vida de atriz, especialmente da sua relação nada convencional com a fama e o sucesso (Liv revela-se autenticamente modesta). Fala também dos bastidores de alguns filmes que fez, como Persona, Cenas de um Casamento e Face a Face, além da peça Casa de Bonecas, de Ibsen.
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Tudo o que diz tem apelo universal, pouco distante de escritos de auto-ajuda. Mas sua inteligência e intuição artística a levam para soluções bem mais interessantes.
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A narração se alterna informalmente entre a primeira e a terceira pessoa, num constante mudar de ponto de vista, mecanismo semelhante à montagem de um filme. Os tempos também se misturam, se entrelaçam - podem passar da infância à meia-idade de um parágrafo a outro, sem prejuízo da fluidez.
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Algumas de suas sentenças são bastante reveladoras:
"Gosto de closes. Para mim são um desafio. Quanto mais perto chega a câmera, mais ansiosa fico para mostrar um rosto completamente nu, desvendar o que está por trás da pele, dos olhos, dentro da cabeça. Apresentar os pensamentos que se formam".

Mais.
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Lembro de ter lido esse livro quando organizava uma Biblioteca. Era a primeira edição. Agora ele está sendo relançado pela  CosacNaify em capa dura, numa bela edição com fotos. O livro é lindo, comovente, delicado e muito esclarecedor. Não dá pra separar a história de Liv da de Bergman, sempre serão referência um do outro, mas a visão feminina, o olhar de Liv percorrendo a história deles, do cinema, de Bergman é único. Recomendadíssimo.
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Comentários

Fred Matos disse…
Esta nova edição eu não conheço, mas tinha a primeira(não sei quem levou) e recomendo vivamente.
Beijos
minha querida adorei este texto , principalmente ao me deparar com um pedaço que sinto tambem......As vezes me deparo com um joao que tem a infantilidade que a sociedade teima em nao aceitar e que muitos deixam escondidas dentro de si....eu tento nao esconder este joao, e ele volta e meia aparece para me falar...
Beijos é muito prazeroso estar aqui
joao
A julgar pelos trechos que aqui estão,Mutações é,no mínimo,um livro comovente.
E,se você recomenda,Andrea,lá vou eu,aproveitando as férias,seguir sua sugestão.
Uma ótima semana para você.
Beijos.

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