"[...] a arte de escrever histórias consiste em saber extrair daquele nada que se entendeu da vida todo o resto; mas, concluída a página, retoma-se a vida, e nos damos conta de que aquilo que sabíamos é realmente nada."
Italo Calvino - O Cavaleiro Inexistente.
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A leveza na literatura, segundo Italo Calvino
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Quando iniciei minha atividade literária, o dever de representar nossa época era um imperativo categórico para todo jovem escritor. Cheio de boa vontade, buscava identificar-me com a impiedosa energia que move a história de nosso século, mergulhando em seus acontecimentos coletivos e individuais. Buscava alcançar uma sintonia entre o espetáculo movimentado do mundo, ora dramático ora grotesco, e o ritmo interior picaresco e aventuroso que me levava a escrever.
Logo me dei conta de que entre os fatos da vida, que deviam ser minha matéria-prima, e um estilo que eu desejava ágil, impetuoso, cortante, havia uma diferença que eu tinha cada vez mais dificuldade em superar. Talvez que só então estivesse descobrindo o pesadume, a inércia, a opacidade do mundo – qualidades que se aderem logo à escrita, quando não encontramos um meio de fugir a elas.
Às vezes, o mundo inteiro me parecia transformado em pedra: mais ou menos avançada segundo as pessoas e os lugares, essa lenta petrificação, não poupava nenhum aspecto da vida. Como se ninguém pudesse escapar ao olhar inexorável da Medusa.
O único herói capaz de decepar a cabeça da Medusa é Perseu, que voa com sandálias aladas. Perseu, que não volta jamais o olhar para a face da Górgona, mas apenas para a imagem que vê refletida em seu escudo de bronze. Eis que Perseu vem ao meu socorro até mesmo agora, quando já me sentia capturar pela mordaça de pedra – como acontece toda vez que tento uma evocação histórico-autobiográfica.
Melhor deixar que meu discurso se elabore com as imagens da mitologia. Para decepar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar, Perseu se sustenta sobre o que há de mais leve, as nuvens e o vento, e dirige o olhar para aquilo que só pode se revelar por uma visão indireta, por uma imagem capturada no espelho.
Sou tentado de repente a encontrar nesse mito uma alegoria da relação do poeta com o mundo, uma lição do processo de continuar escrevendo.
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Ítalo Calvino, “Leveza”, in Seis propostas para o próximo milênio. Trad. de Ivo Barroso, Cia. das Letras, S. Paulo, 1990, p. 15-6.
"Cidades Invisíveis" é o meu livro predileto de Italo Calvino.
O livro é estruturado como uma colectânea de 55 mini-contos matematicamente intitulados e enquadrados por fragmentos de conversas entre Marco Polo e Kublai Kan. A história que o sobrevoa e lhe serve de pretexto trata dos relatórios que Polo faz ao rei dos mongóis sobre as cidades que visita nas suas viagens pelo grande império do Kan. Mas, na realidade, o objetivo de Calvino é traçar-nos o retrato de uma série de cidades exemplares, e como tal fantásticas, perdidas num limbo espaço-temporal onde os bazares e as rotas de caravanas se cruzam com problemas de tráfego e arranha-céus, cada uma com uma característica que a marca e distingue (e que se reflete no título do mini-conto respectivo), e todas com nomes femininos, chegando por vezes a assaltar-nos a dúvida se Calvino não estará no fundo a falar de mulheres e não de cidades.
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"Às vezes o espelho aumenta o valor das coisas, às vezes anula. Nem tudo o que parece valer acima do espelho resiste a si próprio refletido no espelho. As duas cidades gêmeas não são iguais, porque nada do que acontece em Valdrada é simétrico: para cada face ou gesto, há uma face ou gesto correspondido invertido ponto por ponto no espelho. As duas Valdradas vivem uma para a outra, olhando-se nos olhos continuamente, mas sem se amar."
Cidades Invisíveis
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"De todas as mudanças de língua que o viajante deve enfrentar em terras longínquas, nenhuma se compara à que o espera na cidade de Ipásia, porque não se refere às palavras mas às coisas. Uma manhã cheguei a Ipásia. Um jardim de magnólias refletia-se nas lagoas azuis. Caminhava em meio às sebes certo de encontrar belas e jovens damas ao banho: mas, no fundo da água, caranguejos mordiam os olhos dos suicidas com uma pedra amarrada no pescoço e os cabelos verdes de algas.Senti-me defraudado e fui pedir justiça ao sultão. Subi as escadas de pórfido do palácio que tinha as cúpulas mais altas, atravessei seis pátios de maiólica com chafarizes. A sala central era protegida por barras de ferro: os presidiários com correntes negras nos pés içavam rochas de basalto de uma mina no subsolo.
Só me restava interrogar os filósofos. Entrei na grande biblioteca, perdi-me entre as estantes que despencavam sob o peso de pergaminhos encadernados, segui a ordem alfabética de alfabetos extintos, para cima e para baixo pelos corredores, escadas e pontes. Na mais remota sala de papiros, numa nuvem de fumaça, percebi os olhos imbecilizados de um adolescente deitado numa esteira, que não tirava os lábios de um cachimbo de ópio.-Onde está o sábio?-O fumador apontou para o lado de fora da janela. Era um jardim com brinquedos para crianças: os pinos, a gangorra, o pião. O filósofo estava sentado na grama. Disse:-Os símbolos formam uma língua, mas não aquela que você imagina conhecer."
Extraído de Italo Calvino, "As cidades e os símbolos", As cidades invisíveis, São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.47-48, traduzido do italiano por Diogo Mainardi.
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Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra.
"Mas qual é a pedra que sustenta a ponte?"pergunta Kublai Khan.
"A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra," responde Marco,"mas pela curva do arco que estas formam."
Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo.
Depois acrescenta: "Por que falar das pedras? Só o arco me interessa."Polo responde: "Sem pedras o arco não existe."
Cidades Invisíveis.
Italo Calvino nos deixou em 19/09/1985, deixando vasta obra que eu recomendo com louvor.
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