Centenário do meu querido Botafogo, deixo uma crônica de Paulo Mendes Campos sobre o garrincha. Essa crônica foi publicada na coluna do Armando Nogueira e é como ele mesmo disse, um verdadeiro poema em prosa.
NA GRANDE ÁREA
O ponta e o poeta
Como eu previra, houve flores, houve abraços, houve amigos na inauguração da placa de Paulo Mendes Campos, numa das mais cândidas pracinhas do bairro do Leblon. Falaram Thiago de Mello e Arthur da Távola, exaltando a obra poética de Paulinho. Thiago lembrou o ponta fogoso que era o poeta. Joan, viúva de Paulinho, descerrou a placa que estava coberta com a bandeira do Botafogo. Botafogo, paixão de Paulinho. Belas crônicas ele escreveu, celebrando o clube e suas grandes estrelas. A crônica de Paulinho sobre Garrincha é um verdadeiro poema em prosa. Leiam, por favor.
“Quando ele avança, tudo vale. A ética do futebol não vigora para Mané. O fair-play exigido pelos britânicos é posto à margem pelos marcadores, pelos juízes, pelas torcidas. Regras do association abrem estranhas exceções para ele. Uma conivência complacente se estabelece de imediato entre o árbitro e o marcador, o primeiro compreendendo o segundo, fechando os olhos às sarrafadas mais duras, aos carrinhos perigosos, aos trancos violentos, às obstruções mais evidentes. Quando esses recursos falecem, o marcador em desespero, sem medo ao ridículo, agarra a camisa de Garrincha. Aí o juiz apita a falta, mas sem advertir o faltoso: o recurso é limpo quando se trata de Garrincha.
Todos os jogadores do mundo - ensina o professor Nilton Santos - são marcáveis, menos seu Mané. Mané em dia de Mané só com revólver. Nilton é o mais consciente dos fãs de Garrincha, costumando dizer que, se ainda jogou futebol depois dos trinta anos, foi por ser do mesmo time de seu Mané.
Uma tarde apareceu para treinar um menino de pernas tortas. Já no vestiário o técnico Gentil Cardoso, rindo-se, chamara a atenção de todos para o candidato: aquele sujeito poderia ser tudo na vida, menos jogador de futebol. Começado o treino, lá pelas tantas uma bola sobrou para Garrincha.
Nilton proferiu o grito de costume, mas o menino torto matou a bola com facilidade e ficou esperando. Ferido pela ousadia, Nilton partiu para cima do garoto com decisão. (Já joguei contra ele: é uma extração rápida e sem dor). Talvez naquele momento estivesse em jogo, não só a bola, mas o destino de Garrincha. Se Nilton o desarmasse e lhe aplicasse como corretivo à petulância duas ou três fintas, Gentil Cardoso não esperaria muito para enviar o novato sem jeito para o chuveiro. Apesar desse perigo, e a despeito de estar enfrentando um jogador da mais alta categoria, Mané escolheu o caminho da porta estreita: driblar Nilton Santos.
Só três vezes em sua carreira Nilton levou drible entre as pernas: a primeira foi ali naquele instante. A alegria do futebol de Garrincha está nisso: dentro do campo, ele se integra no espaço que lhe é próprio, não reflete mais, não perde tempo com a vagareza do raciocínio, não sofre a tentação dos desvios existentes no caminho da inteligência. Como um poeta tocado por um anjo, como um compositor seguindo a melodia que lhe cai do céu, como um bailarino atrelado ao ritmo, Garrincha joga futebol por pura inspiração, por magia, sem sofrimento, sem reservas, sem planos. O futebol requintadamente intelectual de Didi é sofrido e sujeito a todas as falhas do intelecto. Garrincha, pelo contrário, se suas condições físicas estão perfeitas, se nada lhe pesa na alma, é como se fosse um boneco a que se desse corda: não reflete mais.
Garrincha é como Rimbaud: gênio em estado nascente. Se um técnico desprovido de sensibilidade decide funcionar como cérebro de Garrincha, tentando ser a consciência que lhe falta, isto é, transmitindo-lhe instruções concretas, lógicas, coercitivas, pronto ? é o fim. O grande mago perde a espontaneidade, o espaço, o instinto, a força. Em vez do milagre, que ele sabe fazer, ensinam-lhe a fazer um truque sensato.
João Saldanha sabia que não há instrução possível para Garrincha. Se a virtude do Mané nada tem a ver com a lógica, não será através da lógica que lhe corrigiremos os possíveis defeitos. E defeitos e virtudes não são partes que se possam isolar em Garrincha, que escreve certo por linhas tortas.
O jornalista Armando Nogueira tem uma teoria muito boa sobre o drible de seu Mané, apesar de Mário Filho não concordar com ele e comigo. O drible, diz Armandinho, é, em essência, fingir que se vai fazer uma coisa e fazer outra; fingir por exemplo que se vai sair pela esquerda, e sair pela direita”.
Paulo Mendes Campos
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