Pois é, pelejei atrás de um texto, poema, crônica, conto de Ano Novo, achei os de sempre. Daí que navegando pelos arquivos dos meus documentos, achei Manoel de Barros e esse texto maravilhoso e pensei: uma analogia! É isso! Resolvida a peleja, li e reli e achei que falando da invenção do poema, bem que poderia ser a invenção do Ano Novo. Um ano que começaremos as cegas, assim como disse o mestre, se começa um poema. Depois piora? Depende. Depende da escrita, do verso, da rima...agora só lendo pra saber ;)

Feliz Ano Novo!


Como fiz um retrato de andarilho*

Manoel de Barros



..........O começo de um poema é quase sempre cego. Depois é que piora. Não se vê mais que um vislumbre, um lince. Diante do papel em branco sou agora um pobre indigente. Procuro um poema. Converso com letras, maluquinhos de mosca, com nódoas de parede (Toda vez que vejo uma parede, ela me entrega às lesmas. Não sei se isso é repetição de mim ou das lesmas.) Procuro coisas no meu caderno de rascunhos. Toda palavra é plissada - ele me diz. Tem muitos desdobramentos. É preciso apalpar suas dobras que a fenda cede. Tento um soneto erótico. Só me veio o primeiro verso. "Quero apalpar-lhe a polpa latifúndia". Acho muito vulgar. A fazeção de inventos é um ato de inércia. Estou fazendo um exercício de inércia? Vejo uma cor perto de mim tendendo a canto. Penso que preciso aprender a não saber nomes. Porque não sabendo os nomes tenho de me expressar por imagens. E é disso que o poeta precisa. Imagens não serão o resultado de uma pobreza vocabular? Separo isso para bobagem. Eu vi um girassol se apropriar da estrada. Estou a me distrair. Preciso de concentração. Quero montar uma indústria de fazer flautas mágicas. Lembrei de uma certa ave com um defeito vegetal na voz. Cantava e parecia planta. Ouço um pouco o silêncio das moscas. Chega a ser um escândalo o silêncio das moscas. Sou um sujeito letrato em dicionários. Resolvo ir ao Morris. Folheio, folheio. Passo para o Viterbo. No seu "Elucidário das palavras, termos e frases que em Portugal antigamente se usavam e que hoje naturalmente se ignoram", viajo sobre termos arcaicos, mas nada me repercute. Não acho nada. Um torpor animal de lagarto no mês de agosto me invade. Há um ponto na tarde com andorinhas tortas. Faço leituras, rabiscos. Tento uma colagem de urubu e lírio. Agora alguma água está iniciando um peixe. Em algum lugar. Penso nisso. Tento apalpar as intimidades do mundo. Abro um volume de contos do Mestre Machado de Assis. Estou lendo "Jogo do Bicho". Ali, quase ao final, um funcionário público de nome Camilo acerta o milhar da cobra. cento e vinte contos! Eram três horas da tarde. Quase fim do expediente. Camilo queria correr. Pensou em pedir ao chefe para sair mais cedo. Queria abraçar a mulher e a fortuna juntas. Mas havia um trabalho a ser entregue ao chefe. Havia uma cópia e a cópia estava borrada. Caíra sobre ela um vidro de tinta. Mestre Machado conta o episódio: "Camilo quis deitar a correr, mas o papel borrado de tinta o acenou que não. Foi ao chefe, contou-lhe o desastre e pediu para fazer a cópia no dia seguinte, viria mais cedo, levaria a cópia para casa.
....- Que estás dizendo? A cópia há de ficar pronta hoje>
....- Mas são quase três horas.
....- Prorrogo o expediente. Camilo teve vontade de prorrogar o chefe até o mar, se lhe era lícito dar tal uso ao verbo e ao regulamento".
..........O Mestre Machado enverbara uma insânia. Era preciso prorrogar o chefe até o mar. O verbo prorrogar saiu de seu contexto habitual de prorrogar uma data, prorrogar a entrega do imposto de renda, etc. - e veio espichar um chefe até o mar. Cioso de sua linguagem, o Mestre ainda pôs suas dúvidas sobre a licença poética, mas no fundo deve ter sorrido. Tinha ventas aquele neologismo inóspito! Ele enverbara uma insânia. Era preciso prorrogar os chefes até o mar. Nessa hora me veio uma clave de águas. Gosto mais das claves de água do que das claves de sol. Pensei no velho andarilho que só andava às beiras. Me veio o primeiro verso, que tinha alguma coisa a ver com espichar alguém até uma água. Eis o poema " Retrato de Andarilho".

....................Quando menino encompridava rios.
....................Andava devagar e escuro - quase formado em silêncio.
....................Queria ser a voz em que uma pedra fale.
....................Paisagens vadiavam no seu olho.
....................Seus cantos eram cheios de nascentes.
....................Um ser acrescentado em passarinhos. .

..........Como eu estava dizendo. É saudável fazer que os verbos delirem. É necessário que as palavras desatinem. Ó açucenas arregaçadas! É preciso prorrogar os chefes até o mar. É preciso molecar o idioma. Fazer neologismos semânticos. Fazer nascimentos linguísticos. (Ah! Os artistas existem para fazer nascimentos!). Eu desandei?

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(*) Publicada na revista Poesia Hoje

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