CHEIOS DE FOME - LEANDRO KARNAL
*CHEIOS DE FOME* LEANDRO KARNAL - O ESTADO DE S.PAULO
LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR E PROFESSOR DE HISTÓRIA
CULTURAL DA UNICAMP
Que ninguém acuse o PMDB de incoerência e contradição. Para
negar valores é preciso primeiro que eles existam, diz historiador
Escrevo com o Brasil já sob nova administração. Crônica de
uma morte longamente anunciada, a presidente Dilma foi afastada do cargo e o
vice, Michel Temer, assumiu o posto máximo do Executivo. Vices são fundamentais
no Brasil. A história da República tem tantos que seria prudente colocar em
primeiro plano, nas próximas eleições, as ideias e a biografia do eventual
substituto. Deodoro foi nosso primeiro presidente, mas renunciou meses após ter
sido eleito. Seu vice- Floriano Peixoto, trouxe energia e ideologia ao cargo, e
é chamado de “consolidador da República”. Nosso primeiro presidente civil,
Prudente de Morais, tinha saúde frágil e o vice, o médico Manuel Vitorino
Pereira, teve oportunidade de substituí-lo. A morte do presidente Afonso Pena,
em 1909, levou o vice Nilo Peçanha ao poder. A gripe espanhola levou o eleito
Rodrigues Alves e seu vice, Delfim Moreira, assumiu entre 1918 e 1919. O
assassinato de um vice, João Pessoa, em 1930, foi o estopim de um movimento que
levou Getúlio Vargas ao Catete. Sem vice ao subir, Getúlio caiu sem vice em
1945, levando o presidente do STF (José Linhares) a se tornar a alternativa
possível. Outro vice, Café Filho, assumiu quando do suicídio de Vargas, em
1954, sendo o primeiro protestante a subir à presidência do Brasil. Outro vice,
João Goulart, tornou-se presidente em 1961, com a renúncia de Jânio Quadros.
Pedro Aleixo foi impedido de assumir quando o marechal Costa e Silva teve um
problema de saúde. Daqui em diante a memória de muita gente ajuda: desde a
redemocratização, 3 vices (Sarney, Itamar e Temer) tornaram-se presidentes. Os
três últimos apresentam em comum serem membros do PMDB. Partido surgido com o
Ato Institucional número 2 (outubro de 1965) que dissolveu o pluripartidarismo
e criou MDB e ARENA, uma oposição confiável e um partido da situação.
Curiosamente, nas justificativas para o ato institucional, os militares usaram
um argumento que, de alguma forma, foi repetido por muitas pessoas nas votações
da Câmara e do Senado recentes. Dizia o texto : “A Revolução é um movimento que
veio da inspiração do povo brasileiro para atender às suas aspirações mais
legítimas: erradicar uma situação e um Governo que afundavam o País na
corrupção e na subversão.” É uma característica quase universal dos movimentos
políticos invocarem que falam em nome do povo e não de interesses partidários
ou pessoais. Desde que o conceito povo entrou no vocabulário político do
Ocidente, com a Revolução Francesa, ele tem sido usado para tudo, menos para os
interesses do povo propriamente ditos. O nome povo sempre foi sagrado, mas o
povo real sempre foi alvo de gás de pimenta. O MDB virou PMDB e continuou sendo
uma frente ampla, sem uma posição clara sobre a maioria das questões. Acima de
tudo, o partido virou peça estratégica. Por quê? Ele é suficientemente variado
e amplo para poder estar associado a qualquer projeto político mais claro. Pode
estar ao lado de um político tradicional como Tancredo Neves ou ao lado de um
emergente da política como Collor. Também não faz má figura ao lado de um ex-operário
socialista como Lula. Não existe contradição em termos porque não existem
termos no PMDB. Não há negação de valores porque isto implicaria a existência
deles. Eventualmente, críticos do governo FHC podem levantar pontos e medidas
que contrariam a tradição sociológica do ex-presidente ou a alegada
social-democracia do seu partido. Da mesma forma, inimigos da era Lula-Dilma
podem demonstrar que o mercado financeiro foi beneficiado de forma estranha
para a orientação esquerdista de ambos. Esqueçam o que escrevi ou deletem quem
eu fui são frases inerentes ao exercício do poder real no Brasil. Porém, seria
injusto alegar qualquer incoerência com o PMDB. Incoerência em relação a qual
princípio? O PMDB foi convidado para estas chapas eleitorais não pelos valores,
mas pela sua presença no legislativo federal e nas prefeituras, pela sua imensa
atomização e maleabilidade. Sei exatamente o que pensam os deputados Bolsonaro
ou Jean Wyllys. E um deputado do PMDB? O novo presidente da República, Michel
Temer, anunciou que constituiria um ministério de notáveis e com cortes no
absurdo número daquela esplanada. Retrocedeu nas duas decisões. Lógica da
Realpolitik: não é o idealismo da transformação que marca a ação nem de Temer e
nem do PMDB, mas da já gasta ideia do príncipe de Salina de Lampedusa, da
mudança superficial para garantir a manutenção estrutural. Dilma levou tempo
para entender que o cão de guarda furioso ajuda o dono, desde que muito bem
alimentado. O curioso é que o PMDB foi escolhido por representar esta
segurança. Sarney era o líder do partido que apoiou a ditadura e seu nome
deveria acalmar conservadores sobre as intenções da Nova República. Itamar
Franco era o contrapeso à ação coruscante de Collor. Temer cumpriu o mesmo
papel. O PMDB garantia a blindagem do governo e esta quase autonomia
bonapartista que marca Brasília em relação à nação. O poder dos bastidores, o
conchavo de sacristia, as reuniões que decidem tudo antes de levar a questão já
acordada para o plenário foram e são as marcas dos políticos profissionais. A
politica assim concebida, só entende valores como “clamor das ruas”, “respeito
à constituição”, “bandeira da ética” ou outra qualquer como óleo a ser usado
para lubrificar as engrenagens do poder. Democracia e povo são fundamentais, desde
que, claro, não contrariem o objetivo prático e imediato do interesse político.
Mas há um risco em passar de vice a titular. É o risco inerente a toda amante
que deseja ser esposa. A vida alternativa tinha quase todos os benefícios e
pouca exposição. Agora, a vidraça está exposta ao sol e ao alcance dos
estilingues. Poderíamos inverter a frase de Jesus no Calvário: “Pai, eles podem
ser perdoados? Não sei, mas eles sabem exatamente o que fazem”. Não duvide
disto, leitor!
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