A sombra e a Escuridão.
O filme é antigo, bem antigo, esta longe de ser um clássico, não há nenhuma interpretação que chame atenção, mas trata-se de uma história absolutamente incrível que aconteceu na África lá pelos idos de 1898. O filme não foi completamente fiel à história, mas nem por isso deixa de ser um bom filme ou melhor uma história espetacular. Se puder, assista.
Abaixo a verdadeira história dos Leões de Tsavo do ótimo site : Conhecimento hoje.
Clique na imagem para ler a reportagem completa.
Os Leões de Tsavo
O
estudo de Yeakel e sua equipe é um bocado complexo, e se baseou na análise das
proporções relativas de isótopos estáveis de carbono e nitrogênio no colágeno
de ossos e dentes, e na queratina dos pelos. Para isso usou amostras de tecidos
dos dois leões, de herbívoros diversos e leões da mesma região, e de humanos.
Como os tecidos se regeneram em velocidades diferentes, pode-se inclusive
determinar a dieta média durante a vida toda (colágeno de ossos e dentes) e nos
últimos meses ou semanas de vida (queratina dos pelos).
Para os leões atuais a análise indicou uma dieta exclusiva de herbívoros
(grazers). O leão FMNH 23969 apresentou um resultado não muito diferente dos
leões atuais, mas o outro (FMNH 23970), nos últimos meses de vida teria 30% de
sua dieta formada por carne humana. Este leão é o que apresenta sérios defeitos
nos dentes e teria sido o principal matador, e o outro deve ter se acostumado à
carne humana ao partilharem a presa.
Outros pesquisadores ofereceram hipóteses para explicar o comportamento dos
dois leões :
- A eclosão em 1898 de uma doença (Rinderpest disease) teria dizimado as presas
usuais dos leões (herbívoros selvagens e gado doméstico), obrigando-os a
procurar outra fonte de alimento.
- Os leões teriam se acostumado a encontrar cadáveres nas imediações do vau do
Rio Tsavo. Caravanas de escravos vindas de Zanzibar passavam rotineiramente por
ali.
- Cremação incompleta praticada por trabalhadores hindus da ferrovia. Os leões
se habituaram a procurar os corpos e desenterrá-los.
- Um dos leões tinha os dentes severamente danificados (já mencionado). Nem
todas as presas naturais dos leões se limitam a fugir, algumas revidam o
ataque. Girafas e zebras podem dar coices extremamente violentos, as zebras
podem galopar e escoicear ao mesmo tempo (ver imagem). Um leão com a mandíbula
fraturada é um leão morto, ele morrerá de fome. O leão FMNH 23970 pode ter
levado um coice e ficado com os dentes defeituosos.
Quanto ao filme “A Sombra e a Escuridão” (“The Ghost and the Darkness”,
1996), considero-o um bom filme de aventura, com ótima fotografia e boa trilha
sonora. Mas tem pouco a ver com os fatos narrados pelo Cel. Patterson em seu
livro “The Man-Eaters of Tsavo and Others African Adventures”, publicado em
outubro de 1907. O caçador profissional vivido por Michael Douglas jamais
existiu, por outro lado, o vagão-armadilha realmente foi utilizado e falhou. O
ataque ao hospital aconteceu.
Os leões treinados Bongo e César usados no filme, também aparecem em “George
of the Jungle” de 1997, e são leões com juba, ao contrário dos originais.
Acredito que a produção não tosou a juba dos leões para as filmagens porque
achou que o público não aceitaria bem a imagem de leões sem juba.
A questão da falta de juba tem sido estudada, e causas como desequilíbrio
hormonal (testosterona), parasitas e alimentação foram avaliadas. Um nível
excessivo de testosterona poderia provocar um efeito similar à calvície nos
leões e torná-los mais agressivos. Há inclusive casos documentados de uma
situação oposta : leoas que desenvolveram jubas por desequilíbrio hormonal.
O livro do Cel. Patterson tornou-se de imediato um best-seller e foi
reeditado duas vezes ainda em 1907, todos os anos de 1908 a 1914, e depois em 1917
e 1919. Isso deve ter-lhe rendido um bom dinheiro, e Patterson ainda vendeu em
1924 as peles e os crânios dos leões ao Field Museum de Chicago, por cinco mil
dólares. É lá que os leões estão atualmente.
John Henry Patterson (1867-1947) nasceu na Irlanda e entrou para o Exército
Britânico aos 17 anos. Lutou na Guerra dos Boers e na 1ª. Guerra Mundial, e
deixou o exército em 1920 após 35 anos de serviço. Passou seus últimos anos na
Califórnia junto com a esposa Francis, onde ambos faleceram. Apesar de
protestante, foi um grande defensor do Sionismo, seu corpo foi cremado e as
cinzas enviadas para Israel.
Patterson foi comissionado em 1898 pela Companhia Britânica da África do
Leste para supervisionar a construção da ponte ferroviária sobre o rio Tsavo, e
chegou à Mombasa, na costa, em 1º. de março. Viajou o mais depressa que pôde
para Tsavo, a mais de 160 quilômetros da costa, onde encontrou uma paisagem de
árvores baixas e esquálidas, espessa vegetação rasteira e espinheiros.
Poucos dias após sua chegada soube que dois leões haviam sido vistos nos
arredores, e trabalhadores (eram indianos) começaram a desaparecer.
Inicialmente os ataques aos acampamentos muitas vezes fracassavam, mas logo os
leões ganharam experiência e se tornaram atrevidos. As “bomas” (cercas de
espinhos) construídas depois em volta dos acampamentos não detinham os ataques,
os leões pulavam por cima ou encontravam um ponto mais fraco e forçavam a
entrada. Fogueiras e dispositivos barulhentos construídos com latas vazias não
os assustavam. No início somente um entrava e o outro esperava no mato, mas
depois os dois passaram a entrar, o que dobrava a chance de pegarem alguém.
Chegavam a devorar tranquilamente suas presas a poucas dezenas de metros dos
acampamentos, sem se perturbar com saraivadas de tiros disparados em sua
direção, no escuro. Os ruídos dos leões se alimentando era plenamente audível e
apavorava os trabalhadores. Estes passaram a acreditar que os leões eram
demônios que não podiam ser mortos, e a coincidência infeliz do início dos
ataques com a chegada de Patterson fez com que lhe atribuíssem má sorte. Foram
nove meses de ataques cada vez piores, até que em dezembro o terror era tanto
que a construção da ponte chegou a ficar paralisada por três semanas.
Patterson realizou incontáveis vigílias noturnas sem resultado, e até
construiu um vagão-armadilha, mas quando um dos leões finalmente se deixou
apanhar, os atiradores indianos do outro lado das barras (trilhos de trem)
ficaram tão apavorados que apenas conseguiram feri-lo levemente. Uma bala
perdida soltou uma das barras da porta e o leão escapou. Este episódio do
vagão-armadilha foi muito bem realizado no filme.
A morte do primeiro leão, 09/dezembro/1898 :
Patterson e o leão FMNH 23970 morto em 09-12-1898
Pela manhã os leões haviam atacado um dos acampamentos, mas só conseguiram
matar um burro. Ao seguir os rastros, Patterson descobriu um dos leões
escondido em um espesso matagal. Reunindo um bando de trabalhadores indianos,
fez com que avançassem em direção ao matagal, produzindo grande barulho com
latas e gritos. Patterson colocou-se do lado oposto e aguardou. Como esperado,
o leão, perturbado pela barulhada crescente, abandonou o burro morto e fugiu
exatamente na direção do caçador. Patterson fez cuidadosa pontaria e puxou o
gatilho, mas o rifle, que recebera emprestado recentemente, falhou. O susto foi
grande e Patterson esqueceu-se de disparar o cano esquerdo (Nota 1), pois
estava acostumado com seu próprio rifle, que era de repetição. Felizmente o
leão só pensava em fugir e não o atacou. No último momento Patterson disparou o
cano esquerdo e atingiu o leão, sem detê-lo contudo.
Como o burro ainda estava quase inteiro, Patterson supôs que um dos leões poderia
voltar à noite e mandou construir um “machan” a uns três metros da carcaça,
pois não havia qualquer árvore apropriada por perto. O “machan” tinha quatro
metros de altura, constituído por quatro postes cravados no chão, inclinados
para dentro, sustentando no topo uma tábua que servia de assento.
Ao anoitecer Patterson assumiu sua posição, e horas depois, na escuridão,
ouviu o leão se aproximar denunciado por ligeiros ruídos no mato. Mas o leão
ignorou a carcaça do burro e ficou mais de duas horas rodeando o “machan” e
rugindo. Com os nervos à flor da pele, Patterson esperava que a qualquer
momento o leão tentasse escalar a frágil estrutura ou pulasse até ele. Como se
não bastasse, uma coruja veio voando e chocou-se contra sua cabeça, dando-lhe
tremendo susto. Finalmente Patterson conseguiu distinguir a forma do leão o
suficiente para tentar um disparo; o leão respondeu com tremendo rugido e
começou a saltar em todas as direções. Patterson não podia mais vê-lo mas
continuou atirando seguidamente na direção dos ruídos, que cessaram afinal. Só
ao amanhecer Patterson desceu do “machan” e encontrou o leão morto, atingido
duas vezes : uma bala entrou atrás do ombro esquerdo e atingiu o coração, e a
outra atingiu uma perna traseira.
A falha do rifle, a espera no “machan” e até a coruja desnorteada aparecem no
filme, mas de modo bem diferente.
A morte do segundo leão, 29/dezembro/1898 :
O leão FMNH 23969 morto em 29-12-1898
Por sorte o primeiro leão morto era o maior matador de pessoas, e Patterson
não relata em seu livro novas mortes. Ele não diz o dia exato em que, ao vigiar
as carcaças de algumas cabras mortas pelo leão restante, conseguiu acertá-lo no
ombro usando uma espingarda de dois canos carregada com balas sólidas (slugs).
O leão foi derrubado mas levantou-se e fugiu antes que Patterson pudesse usar o
rifle.
Menciona então que decorreram uns dez dias de calma, até que na noite do dia
27 o leão reapareceu e tentou agarrar alguns indianos que dormiam em uma
árvore, e ele só pôde espantá-lo a tiros. Na noite seguinte Patterson e seu
ajudante Mahina ficaram na mesma árvore, na esperança que o leão voltasse. E
voltou mesmo; Patterson conta que ficou fascinado ao observar a fera habilmente
usar cada arbusto disponível para se aproximar desapercebida. Esperou o leão se
aproximar bastante, menos de vinte metros, e disparou seu rifle .303, acertando
no peito, sem derrubá-lo. O leão fugiu em grandes saltos, e mais três tiros
foram disparados, acertando o último.
Logo que amanheceu, Patterson arranjou um rastreador nativo e também levou
Mahina com uma carabina Martini. Haviam percorrido menos de meio quilômetro
quando o leão os atacou; o primeiro tiro somente o tornou mais furioso, e o
segundo o derrubou. Mas o leão se levantou e continuou avançando, e um terceiro
tiro não causou efeito aparente. Ao tentar pegar a Martini, Patterson descobriu
que Mahina havia se apavorado e já estava no alto de uma árvore. Só restava a
Patterson fugir também para a árvore, o que conseguiu por pouco. O leão, apesar
de uma perna traseira quebrada por um dos tiros, quase o agarrou. Apoderando-se
da carabina, Patterson atirou, e o leão caiu e ficou quieto. Empolgado,
Patterson desceu da árvore imprudentemente e dirigiu-se para o leão, que
imediatamente se levantou e atacou de novo. Mas um tiro no peito e outro na
cabeça o mataram finalmente, e o leão tombou a menos de cinco metros de
Patterson. Havia seis buracos de bala no corpo, e Patterson encontrou também
uma das balas da espingarda cravada superficialmente na carne.
No filme, além de muitas outras alterações, os roteiristas optaram por uma
versão “politicamente correta”: o ajudante negro, Mahina, não foge. Pelo
contrário, ele vence seu medo dos leões e corre corajosamente para ajudar
Patterson em dificuldades.
Patterson encerra o caso dos dois leões contabilizando não menos de 28
indianos mortos e um número não determinado de africanos.
Nota 1 : Hoje em dia quando se fala em arma longa de dois canos, logo
pensamos em espingardas. Mas na época das grandes caçadas na África e na Índia,
durante o século XIX e início do século XX, quando os caçadores realmente se
arriscavam, era diferente. Muitos preferiam usar um rifle com dois canos, ao
invés de um rifle de repetição. Apesar da desvantagem do peso maior, os dois
canos permitiam dois tiros seguidos quase simultâneos. Quando se tratava de
animais agressivos e ágeis como tigres e leões, essa era uma enorme vantagem.
Se o primeiro tiro não derrubasse o animal, o tempo de acionamento do ferrolho
do rifle de repetição podia ser fatal. Foram fabricados rifles de dois canos
nos mais variados calibres, desde os menores como o .375 até o poderoso .577
Nitro Express.
Patterson em frente à sua tenda
Comentários