Júlio e Carol
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A história de Julio e Carol é o que eu queria pra minha vida. Queria tanto que poderia dizer que se um gênio aparecesse e me perguntasse o que eu queria nesse exato minuto diria: um grande amor, uma viagem, um diário dessa viagem, muitas noites insones conversando, trocando impressões, visitando lugares e conhecendo pessoas, ainda que o preço para isso fosse morrer pouco tempo depois. Acho que seria o canto do cisne, aquele momento tão único, tão perfeito e definitivo que seria bobagem viver depois disso.
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Julio Cortázar e Carol Dunlop passaram um mês na auto estrada que une Paris a Marselha - uma viagem de férias pelo avesso da realidade. A estrada deixa de ser um percurso para transformar-se o destino da viagem; seu propósito de velocidade transforma-se em lentidão deliberada, pois é possível fazer em poucas horas o trajeto que os autores deste livro fizeram em um mês. Visitando dois parkings por dia, os viajantes, instalados num carro-casa, registram detalhadamente tudo o que vêem: plantas, bichos, erotismo, horizontes bucólicos, gastronomia.
A viagem deu origem ao interessantíssimo livro:
Os autonautas da cosmopista.


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Não bastasse o livro ser ótimo, ainda existe a história por trás do livro. Uma história de amor que, reza a lenda, começou assim:



"Em princípios de 1977, Cortázar viajou ao Canadá para dar conferências sobre literatura latino-americana na universidade de Montreal. Um dia um dos professores se aproximou e o convidou para jantar. Quando entrou no chalé, a primeira coisa que notou foi um belo rosto juvenil, de cabelo curto e bonitos olhos claros. O anfitrião se apressou a apresentá-los: “Carol Dunlop, minha ex-mulher”. Cortázar a olhou e conteve a respiração. Ela estendeu a mão que ele tomou timidamente".

"Cortázar soube que Carol havia nascido nos Estados Unidos, mas havia se mudado para o Canadá depois de ativa participação contra a guerra do Vietnã. Cortázar sorriu com admiração e lhe perguntou em francês o que achava da revolução cubana. Outras pessoas estavam ali, mas ninguém mais existiu para ele naquele jantar".

"De volta a Paris (...) tomou uma folha de papel e escreveu: “Querida Carol: Talvez esta carta lhe surpreenda, mas creio que contém uma idéia interessante e queria que me dissesse com toda franqueza seu ponto de vista (perdão pelo meu espantoso francês, mas sei que não conhece o espanhol). (...)Tenho a impressão de que há em nossas buscas semelhanças quando menos perturbadoras, e me pergunto se uma exploração em comum desse território – em que cada um conservaria, desde logo, uma liberdade total de criação e de língua original – não daria frutos inesperados”".


"Meses depois, Carol deixou Stéphan aos cuidados de seu ex-marido e viajou para Paris. Do aeroporto foi diretamente para o apartamento de Julio. Aos sessenta e cinco anos, e em companhia de uma mulher trinta e dois anos mais nova, começou para ele uma nova vida. Abandonou para sempre suas aventuras extra-conjugais e se entregou a essa união".
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Começa então uma relação de amor que duraria até o fim da vida de ambos, com uma viagem no meio.
(...)
A brincadeira mais extravagante chegou em maio de 1982, quando junto a Carol organizou uma viagem cujo único objetivo era o de escrever um livro sobre a experiência. Estabelecendo uma série de regras e rotinas, a proposta era embarcar em um trailler-caminhonete que haviam comprado e fazer a viagem Paris-Marselha através da Autopista do Sul, parando todos os dias em um dos estacionamentos, num total de setenta. Parariam para escrever, desenhar, ler ou simplesmente dormir um pouco debaixo de alguma árvore, tentando perceber, naqueles lugares, o que geralmente passa despercebido para o turista comum.

As regras do jogo consistiam em que em nenhum momento poderiam sair da autopista, de modo que alguns amigos lhe levariam provisões e outros estariam preparados com antecipação para qualquer imprevisto.

Em uma dessas paradas, escreveu a um amigo: “Já passamos por dez parkings e do décimo te escrevo. A moral é alta, a saúde também. Na maioria dos casos encontramos lugares secretos no fundo dos bosques que os outros turistas, sempre convencionais, parecem temer, pois que ficam amontoados próximos dos banheiros e dos cestos de lixo, ansiosos em devorar seus malditos sanduíches, soltar cinco minutos os pequenos e os cachorros (que, eles sim, vem nos visitar-nos como cúmplices furtivos e cordiais) e igual aos caminhões e os autocars, lançar-se de novo na autopista como leucócitos em uma veia”.

A idéia do casal era que o resultado da viagem fosse um livro em colaboração onde se parodiasse as velhas estórias de viagens ao pólo ou à África, satirizando o ar científico dessas publicações e recolhendo material para futuros contos. A viagem durou trinta e três dias. Chegaram a Marselha cansados, porém satisfeitos. Nenhum dos dois sabia que o que havia começado como um jogo idealizado por um amor apaixonado e criativo, teria após algum tempo o significado de uma despedida.



(...)
Poucas semanas antes de completar os dois meses previstos para a estadia [na Nicarágua], Carol começou a sentir uma dor forte nos ossos que os obrigaram a trocar de planos. Stéphan [filho de Carol] retornou ao Canadá e o casal viajou imediatamente para Paris. No Hospital St. Louis descobriram que um vírus estava afetando a produção de glóbulos brancos e plaquetas de Carol, que foi internada e assim teve iniciou um longo tratamento que se estendeu durante setenta dias.

Essas semanas de tristeza consumiram Cortázar. O tempo transcorria e não se evidenciava nenhuma melhora. Os médicos propuseram um transplante de medula. Os amigos de Cortázar, Aurora, que estava ao seu lado, e ele mesmo se ofereceram como doadores, mas os médicos não conseguiam encontrar compatibilidade.

Apesar de sua força de vontade e as esperanças que mantiveram até o último dia, em 2 de novembro de 1982, Carol “se foi como um fiozinho entre os dedos. (...) Se foi docemente, como era ela, e eu estive ao seu lado até o fim, os dois apenas na sala do hospital onde passou dois meses, onde tudo resultou inútil. Até o final esteve segura de que melhoraria, e eu também, mas nos últimos dias somente ela, por sorte, conservou sua esperança que eu havia perdido depois de falar com os médicos. De nenhuma maneira o dei a entender, a acompanhei como se nada tivesse mudado, e nas
últimas horas consegui que já ninguém entrasse para molestá-la e fiquei ao seu lado, cuidando, até que o ultimo calmante que lhe haviam dado foi adormecendo-a pouco a pouco”, escreve Cortázar em uma carta.
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Cortázar, inconsolável, passava largas horas no cemitério. Sozinho, frente à tumba que um dia seria também a sua, arrumava o ramo de flores amarelas que Carol tanto gostava e se sentava junto a ela: “A morte me golpeou no que mais amava e não tenho sido capaz de levantar e devolver o golpe com o simples ato de voltar a viver. Há momentos em que a única realidade para mim é a tumba de Carol, onde vou ver passarem as nuvens e o tempo sem ânimo para mais nada”.


Até fins de 1983 a saúde de Cortázar seguia piorando. Ao avanço da leucemia se juntavam as complicações intestinais e problemas de pele. Esperançoso com um tratamento intensivo, Julio se internou durante vários dias em um hospital de Paris, mas não conseguiu superar nenhum dos sintomas.
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Em 12 de fevereiro Cortázar murmurou um último desejo. Girou a cabaça em direção da janela e fechou lentamente os olhos. Perto da cama estavam Aurora e Tomasello; no ar, tal como havia pedido, tocava Mozart. Foi sepultado dois dias depois, no cemitério de Montparnasse. Fazia frio e passava pouco de sol por entre as árvores. Um grupo de latino-americanos esperavam encolhidos, os olhos inchados, silêncio e lágrimas. Cortázar chegou em um modesto carro, seguido de dois velhos automóveis dirigidos por seus amigos. Baixaram o imenso ataúde de carvalho e o depositaram na tumba. Ali, debaixo de uma mesma lápide que desde então nunca deixou de estar acompanhada por um ramo de flores amarelas, descansam Carol Dunlop e Julio Florêncio Cortázar, enormíssimo cronópio.





Fontes: Paralelos. Cronópios.
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/Vídeo de Julio Cortázar e Carol Dunlop em Paris
Julio Cortázar e Carol Dunlop brincam de esconde-esconde em Paris. Quem faz a câmera, na maior parte do tempo, é o próprio Julio. Ele filma Carol, que muitas vezes se esconde por trás de uma outra câmera, fotográfica. Às vezes ela toma o controle da filmadora (imagino ser uma super-8) e filma Cortázar brincando como uma criança.






Daqui.

Comentários

AC disse…
Adorei! Vou lincar no cafe.
Sou um fã comovido de cortazar e ach q Rayuela é o Quixote moderno. beijos
Alessandro disse…
Adorei o post, Anja querida.

A aventura... só poderia ser na França.
A brincadeira... só poderia ser em Paris.
O casal... não só poderiam ser eles, mas são. E isto é grandíssimo.
Este post... só poderia encontrar aqui!

Beijão pra tiiiiii!
Clecia disse…
Que linda e triste história. Adorei ler e conhecer um pouco mais sobre o Júlio Cortázar. Parabéns pelo post perfeito!
Anônimo disse…
Estava escrevendo um comentário muito longo, mas posso resumi-lo numa linha:
Me encantó tu blog!
já está add em favoritos.
:-)
Prazer!
Laura
Francine Esqueda disse…
Olá!
Muito bom este blog!
Adorei os textos que li, principalmente o clima e o fantástico visual! Super caprichado... Parabéns!
Beijos e Bom domingo!
Marilac disse…
Olá!
Obrigada por nos encantar contando essa linda história de amor!
O livro deve ser interessantissimo sim!

Bjs
Marilac

obs: cheguei aqui através do blog Eternessencias
Eu que agradeço o carinho e a visitinha de vcs! ;)

bjimm
angel

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