Lucas Mendes: A virgem de Hollywood
Quatro casamentos miseráveis, casos, acidentes trágicos, recordista mundial de bilheteria no cinema e venda de discos. Aos 45 anos deu uma banana para as gravadoras, aos 46 deu outra para Hollywood, aos 49, no auge da carreira televisiva, recusou outro contrato com a CBS. Indiferente à fama e à fortuna, Doris Day deu bye-bye à capital da celebridade e foi viver em reclusão com seus cães em Carmel, na Califórnia.
O pianista Oscar Levant  disse que conheceu Doris Day antes dela ser virgem. A frase absurda tem fundamento.
Esta semana ela fez 88 anos e sem sair de sua reclusão em Carmel, na Califórnia, deu uma entrevista por telefone. Já tinha dado outra, mais longa em outubro para a mesma rádio pública, a NPR. Quando ouvi foi como uma assombração da minha juventude falando comigo às duas da tarde de um sábado.
Nem uma palavra sobre os 4 maridos e o único filho, que morreu de câncer de pele em 2004, com 62 anos.
Doris Day era debochada pela imprensa de Hollywood porque não fumava, não bebia, não ia às festas de Hollywood nem para promover seus filmes.
Seguia à risca sua religião "Igreja de Cristo, Científica", em inglês, Christian Scientist.
Não tomava nenhum remédio nem ia a médicos. Teve várias crises nervosas, e quase morreu de um tumor no útero que foi retirado e se tornou outra fonte de depressão.
Numa carreira de 25 anos no cinema ela foi, e ainda é, a atriz recordista mundial de bilheteria. Gravou 650 músicas, dezenas delas campeãs nas paradas. Nove foram indicadas para Oscars, três ganharam. Num ano teve duas candidatas. Ganhou com Que Será, Será.
Nas entrevistas, a voz está firme, mas, efervescente. Ri o tempo todo, como se tivesse no terceiro copo de champagne. Nenhuma reclamação da vida que muitas vezes foi bruta com ela.
Doris, descendente de família alemã, nasceu e cresceu em Cincinati. O pai, organista e regente do coral da igreja, investiu na filha dançarina e pianista a partir dos cinco anos. Nunca aprendeu a ler música mas aos treze anos foi convidada para ir dançar profissionalmente em Hollywood. Na véspera saiu para uma despedida com os amigos. Na volta para casa o carro foi destruído por um trem.
Doris ficou mais de dois anos na cama e quase teve a perna amputada. A carreira de dançarina morreu, nasceu a de cantora. Imóvel na cama, ouvia rádio e cantava junto com Ella Fitzgerald. Um professor ajudou a arrendondar a voz que tinha, como o pai, afinação perfeita.
Com 16 anos cantava num clube de Cincinati onde conheceu o primeiro marido, um psicopata, de quem levou surras durante a gravidez. Aos 18 ja era mãe e divorciada. Ele suicidou alguns anos depois .
Sobre o segundo e o quarto marido não vale a pena perder tempo. Depois falamos sobre o terceiro.
A voz de Doris, pelo rádio, foi descoberta por Les Brown, líder de uma das grandes bandas da época. Com 23 anos ela gravou Sentimental Journey e foi o primeiro de dezenas de campeões das paradas.
O disco saiu em 44 e a canção teve uma conexão imediata com a Segunda Guerra.
Rock Hudson, que mais tarde faria vários filmes com ela, estava na Marinha e se lembra de sua partida de São Francisco, quando o navio passava debaixo da Golden Gate, com a música nos alto falantes a bordo. A tripulação chorou junto.

A carreira no cinema começou contra a vontade dela que argumentava com o agente: "Não sou, nem sei ser atriz." Um dia conseguiu levá-la para um teste com o diretor Michael Curtiz, o de Casablanca, que fazia seu primeiro filme como produtor independente.
Apesar da falta de interesse, foi contratada para Romance on the High Seas, o primeiro de 39 filmes que vão do ridículo, como That Touch of Mink, Tunel of Love, aos excepcionais Calamity Jane, Lucky Me, Young at Heart, Love Me or Leave Me, The Man Who Knew too Much.
Contracenou com James Cagney, Clark Gable, David Niven, Frank Sinatra, a fina flor dos atores de Hollywood, e se deu bem com todos eles.
No novo livro, Considering Doris Day, o biógrafo Tom Santopietro, homem de Broadway, examina o lado profissional de Doris Day e diz que poucos atores tinham uma ética de trabalho como ela.
Nunca atrasava, fazia o dever de casa, ia para o set de um flme idiota como That Touch of Mink com a mesma atitude que ia para o de Alfred Hitchcock. That Touch of Mink reforçou a fama de "virgem" de Hollywood.
Ela passa o filme inteiro protegendo a virgindade assediada por Cary Grant. Outro fator foi a recusa do papel de Mrs. Robinson em The Graduate. Muito sexo.
Provavelmente a decisão foi do terceiro marido que era o agente dela num casamento que durou quase vinte anos.
Ciumento, isolou Doris e, com ajuda de um advogado/corretor, sem conhecimento da mulher, transferiu a fortuna dela para as contas dele na Suíça. Os cálculos vão de US$ 22 milhões a US$ 100 milhões.


Só soube que estava pobre quando recebeu uma conta de US$ 500 mil do imposto de renda. Processou o advogado e anos mais tarde conseguiu reaver US$ 3 milhões.
O marido também foi responsável por vários filmes que deveriam ter ido para o lixo e pelo contrato de 5 anos com a rede CBS, que ela só soube da existência depois da morte dele.
O repertório musical também ficava muito a critério dos outros. Às vezes tinha arranjadores excepcionais ou parceiros como Andre Previn mas cantava qualquer coisa que colocavam na frente dela.
Apesar dos desastres ninguém vendeu tantos discos como ela durante quase 40 anos de carreira.
Na entrevista ela disse que passou outros 30 sem ouvir um disco dela. Quando um amigo mandou uma coleção completa, ela trancou a caixa no porão.
Uma amiga levou para ela um aparelhinho e disse que tudo que ela tinha cantado estava ali dentro. Foi apresentada ao iPod que já não era novidade. Intrigada concordou em ouvir uma. Chorou como uma criança e comentou que não tinha errado nenhuma nota. Nunca mais ouviu outra.

Fonte: BBC



Comentários

Clecia disse…
Eu não conhecia a história desta cantora e gostei de saber mais sobre ela. Deu até vontade de ouvir suas músicas. Nem sei se já ouvi alguma vez. :) Excelente post!

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