Lou-Andreas Salomé


A primeira vez que li sobre Lou-Andreas Salomé foi atravês de Rilke, Nietz e Freud. Estranho uma mulher ser o elo de ligação entre homens famosos pelas suas indiscutíveis qualidades e talentos, pensei. Depois descobri o por quê do fascinío que Lou exercia sobre os homens. Não era somente sua beleza delicada, era muito mais do que isso e só podia ser mesmo. Naquele tempo as mulheres eram criadas para a perfeição, verdadeiras bonequinhas que com a ajuda da natureza ou não, tinham cada uma a seu estilo meios de conseguir seu pretendente. Mas Lou ia além e o fascínio dela estava justamente num grande diferencial, ela não possuia a beleza vazia de uma boneca, ela era uma intelectual, culta, viva, escrevia com desenvoltura e estava sempre pronta para uma discussão no mesmo nível dos mestres já citados. Ora, imagine isso aliado a beleza? Impossível resistir. Mas vamos a ela ou melhor a um pouco da sua história.


Lou nasceu na Rússia, no dia 12 de Fevereiro de 1861 em S. Petersburgo, de pais alemães e foi a sexta criança e a primeira mulher da família. O pai, Gustav von Salomé, era um general do exército russo dependente dos Romanov.
Enquanto criança, Lou foi descrita como rebelde e inconvencional, embora fosse a preferida do pai. A sua mãe Louise Wilm pertencia a uma próspera família cujo negócio era a exploração e manufaturação de açúcar. As relações entre as duas não foram as melhores e existiu sempre uma enorme tensão.

Mudou-se para Roma quando completou 21 anos de idade, para estudar com Nietzche. Embora o considerasse um dos mais brilhantes pensadores de sempre, ela era demasiado independente para aceitar a proposta de casamento de Nietzche, cujos ciúmes dela contribuíram para o progressivo processo de loucura que o levou à morte.



Em 1887, com 26 anos, aceitou casar com Friedreich Carl Andreas (41 anos), uma união que durou 43 anos. O casamento, ao invés de lhe retirar a liberdade, como era costume na época, permitiu-lhe continuar a escrever ficção e a viajar onde a sua curiosidade intelectual a impelia. Alguns dos historiadores que se debruçaram sobre a sua vida comentam mesmo que este casamento nunca teria sido consumado.

Lou viria a conhecer Rilke em Munique, no ano de 1897, mantendo com o poeta um caso amoroso, até que a dependência de Rilke por ela a levou a partir de novo. Rilke sofreria muito com a separação.

A produção literária de Lou esteve sempre muito ligada aos seus envolvimentos amorosos e da relação com Rilke, aos 36 anos, resultaram obras fundamentais da escritora como "A humanidade da mulher" e "Reflexões sobre o problema do amor".
Durante o ano de 1911, conheceu Freud, o fundador da psicanálise e depressa ficou fascinada por ele e pelo seu trabalho, com o qual colaborou. Escreveu diversos artigos sobre o assunto que foram publicados em jornais da especialidade e estabeleceu uma clínica psiquiátrica que alcançou razoável êxito na Alemanha. Em 1931 publicou ‘A minha gratidão a Freud’ em homenagem ao seu mestre.

A chegada ao poder dos nazis em 1930 foi uma ameaça para ela, porque estes consideravam a psicanálise como uma ‘ciência judaica’ e apontavam para a sua eliminação. Nessa altura, Lou estava doente e não podia deixar o país. Acabou por morrer em 1937, apenas um mês antes de completar 76 anos. Dias depois da sua morte, os nazis confiscaram toda a sua obra e documentos pessoais. Ao todo, Lou escreveu 20 livros e mais de 100 ensaios e artigos.


Um pouco do pensamento de Lou Andreas-Salomé, seus escritos, sua vida, suas paixões:


A paixão de Lou pela vida transparecia em seu próprio físico. Freud lhe escreveu um dia: "você tem um olhar como se fosse Natal". E a escritora Helena Klinkberg (citado por Peters): "O sol se levantava quando Lou entrava numa sala". Era um ser luminoso, transparente e lúcido.

Essa paixão pela vida, ela a transmitia aos outros, fazendo com que as pessoas ao seu contato desenvolvessem e dessem o melhor delas próprias. O que fez alguém escrever: "Quando Lou se interessa apaixonadamente por um homem, nove meses depois este homem dá à luz um livro". Um interesse pelo outro que o leva a crescer e produzir - mesmo quando esse crescimento e essa produção implicam o sofrimento.

Pois Lou Andreas-Salomé conseguiu realizar, em seus 76 anos de vida, o que nós todos gostaríamos e deveríamos fazer sempre - e não o fazemos por descaso, indolência, medo: tornar a vida o exercício apaixonada de uma busca. Sua exploração em todos os possíveis. Isto que requer a fruição intensa e incessante de coisas e pessoas que nos cercam, de modo que o mundo exterior em nós penetre e a nós se incorpore. Pois a vida, como o dizia Rainer Maria Rilke a propósito de Rodin, "está nas pequenas coisas como nas grandes: no que é apenas visível e no que é imenso".

Antes mesmo do seu encontro com Rilke, Louise von Salomé já intuía essa verdade: desde muito cedo encontramos nela um grande apetite de aprender e de amar - e o objeto de sua atenção podia ser a psicanálise, a curtição de uma paisagem, de uma flor, de um esquilo na floresta ou de um corpo amado.

(.....) Lou escreveu vários ensaios sobre o Erotismo. O primeiro deles data de sua ligação com Rilke. Intitulado reflexões sobre o problema do amor, traz as evidentes marcas da embriaguez física e espiritual que sua autora estava vivendo. Aqui ela assinala, em páginas de um admirável lirismo, a capacidade que tem a paixão amorosa de nos abrir o caminho ao sentimento da totalidade da vida e sua faculdade de nos colocar em estado criativo. O ato amoroso "nos enche a alma inteira (...) de ilusões e de idealizações espirituais, forçando-nos o mesmo tempo a nos chocar brutalmente, sem possibilidade de se esquivar, ao dispensador de uma tal desordem; ao corpo". E Lou escreve:

"Pois, sobretudo, resulta no indivíduo uma espécie de interação ébria e exuberante das mais altas energias criadoras do seu corpo e a exaltação mais alta da alma. Enquanto nossa consciência se interessa vagamente, habitualmente, por nossa vida psíquica, como por um mundo que conhecemos mal e que controlamos ainda pior, que ao que parece forma um com ela, mas com o qual normalmente ela se entende mal - eis que se produz subitamente entre eles uma tal comunhão de enervação que todos os seus desejos, todas as suas aspirações se inflamam ao mesmo tempo."

Por essa exaltação da alma através dos sentidos, por essa impressão que o ato amoroso nos dá de haver ido muito longe, e tocado o indizível, é que ele pode influenciar e favorecer a criação, a "pátria do dizível", como escreveu Rilke. E Lou: "O Mundo da criação e do amor significa: volta ao país natal, entrada no paraíso; o a impossibilidade de criar, ou do amor morto, é, ao contrário, um exílio onde os deuses nos abandonam".

A atividade criadora se apaixona por tudo aquilo que é vida em nós, que é indício do que em nós lateja de mais secreto, e que atinge as raízes do ser. O espírito descobre forças que não possuía ou das quais não se apercebia. Pode voltar àquele estado de inocência primeira que possuiu na infância, redescobre a "novidade" das coisas, com o frescor de uma sensação primitiva: o olhar da criança sobre o mundo que descobre maravilhada; o olhar de Adão diante de Eva recém-saída de si.

Confrontado com os seus longes, o amado vê a si mesmo, e ao mundo exterior, como algo recém-criado. Por isso, às vezes a gente sai do amor como quem saiu de uma catedral, redescobrindo o mundo aqui fora com os olhos renovados. O ato amoroso, vivido em plenitude, obriga os amantes a concentrar em si mesmos tudo aquilo de que são capazes, passível de germinar com a força das plantas na primavera.

O ato amoroso transforma o parceiro num "conto estranho e maravilhoso". A Paixão amorosa é uma porta, diferente de todas as outras portas, "em sua arquitetura ornada de elementos ricos de sentido, em virtude de um simbolismo singular". É o caminho por excelência que nos leva a nós mesmos. Por ela "nós não somos um mundo de realidade, somos apenas o espaço e o metteur en scène de um mundo onírico, todo-poderoso, irresistível".

Assim, o amor durará enquanto os amantes forem capazes de oferecer ao outro essa entrega, que dá acesso de modo vital à capacidade de se concentrar neles mesmos, de ser um mundo para si por causa do outro.

A esta altura, a gente poderia se perguntar - não seria esta uma visão demasiado idealizada do amor? Mas Lou não se deixa embalar incondicionalmente pelo êxtase da paixão: esta grande amorosa foi também, segundo a expressão de Freud, uma "compreendedora".

Neste mesmo ensaio, ela nos lembra que no êxtase amoroso, por mais que desejemos nossa fusão com o amado, sempre somos, em última análise, remetidos a nós mesmos. A reconciliação que se fará aqui será sobretudo entre o sujeito e ele próprio, através do outro, mais do que entre o sujeito e o objeto amado.

Num ensaio sobre o erotismo, datado de 1910, e num ensaio posterior, quando Lou já se engajara definitivamente à psicanálise, intitulado Anal e Sexual, ela nos lembra que na união física "a gente não possui um ao outro por meio do corpo, mas apesar do corpo, que, como todo mundo sabe, não se identifica jamais (...) completamente com o todo da pessoa, mas aparece sempre como uma parte dela e resiste à dominação mais viva".

(....) A fusão inteira do nosso ser com o outro, por mais querido que seja, não seria desejável. É preciso que sejamos cada vez mais nós mesmos, para poder ser um mundo para o outro. A relação erótica, remetendo-nos a nós próprios, é uma ocasião de constante renovação: cada vez ela inaugura em nós um ser novo; como um ato de linguagem, cada vez que eu falo a um Tu, é um Eu diferente que fala a um novo Tu: quando digo Eu, já não sou aquela que falava há pouco. A relação erótica é, assim, nela mesma, criação. E o amor um elemento de produção: somos a cada instante outros, encontramos no outro cada vez um elemento novo, diferente, desconhecido, misterioso até - o que dá à relação erótica sua riqueza.

E Lou analisa esta necessidade de renovação e da existência do mistério na relação amorosa:

"Pois, nos seio mesmo da paixão, nunca se deve tratar de "conhecer perfeitamente o outro": por mais que progridam neste conhecimento, a paixão restabelece constantemente entre os dois este contato fecundo que não pode se comparar a nenhuma relação de simpatia e os coloca de novo em sua relação original: a violência do espanto que cada um deles produz sobre o outro e que põe limites a toda tentativa de apreender objetivamente este parceiro. É terrível de dizer, mas , no fundo, o amante não está querendo saber "quem é" em realidade seu parceiro. Estouvado em seu egoísmo, ele se contenta de saber que o outro lhe faz um bem incompreensível... os amantes permanecem um para o outro, em última análise, um mistério."

Assim, o amor não seria um encontro, mas uma busca. Não quer dizer que chegamos, mas que estamos próximos.

Rilke perguntava-se na Primeira elegia de Duíno: "Não é tempo daqueles que amam libertar-se do objeto amado e superá-los, frementes? Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no vôo mais do que ela mesma". E nas cartas a um jovem poeta, em maio de 1904:

"Assim, para quem ama, o amor, por muito tempo e pela vida afora, é solidão, isolamento, cada vez mais intenso e profundo. O amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se, confundir-se, unir-se a outra pessoa. (...) O amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo por si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro ser: é uma grande e ilimitada exigência que se lhe faz, uma escolha e um chamado para longe."

Se o amor é uma busca, se o estudo é uma busca, a arte uma busca, a vida inteira é também busca. E o amor e a paixão são a mola dessa busca.
É preciso buscar com amor, com paixão. Amar a vida, amá-la mesmo e sobretudo quando ela chega ao fim, e o espírito e o corpo vêem limitados seu campo de ação. Nos Cadernos íntimos dos últimos anos, Lou Andreas-Salomé dá um balanço de sua vida. Em fevereiro de 1934, isto é, três anos antes de morrer, ela escreve:

"Distingue-se entre os humanos aqueles que se sentem divididos em um passado e um futuro e aqueles que vivem o presente com cada vez mais densidade, sempre mais plenitude. Os orientais acham natural insistir menos sobre a morte do que se passa do que sobre a perfeição do que se acaba, como aprofundamento da realidade. Nós, ao contrário, começamos a ver aquilo que nos chega, apenas sob o aspecto sempre mais sinistro da morte - como tudo o que se observa de um olhar exterior, logo mortífero."

É preciso amar a vida em todas as suas fases e amar até mesmo a morte. Aqui Eros e Thanatos se dão as mãos - são forças complementares e não contrárias. A morte é a redenção da vida individual, escreve Lou num artigo sobre o misticismo russo. Nossa morte não nos separa dos seres que amamos; ela nos entrega de modo mais completo a eles:

No dia em que eu estiver no meu leito de morte

Faísca que se apagou -,
Acaricia ainda uma vez meus cabelos
Com tua mão bem-amada
Antes que devolvam à terra
O que deve voltar à terra,
Pousa sobre minha boca que amaste
Ainda um beijo.
Mas não esqueças: no esquife estrangeiro
Eu só repouso em aparência
Porque em ti minha vida se refugiou
E agora sou toda tua [Hino à morte]


A morte desfaz, assim, a distância entre os amantes, que agora vivem um no outro, sem que o individualismo os separe. A morte não é uma partida, uma volta: um retorno do indivíduo àquela união primitiva com as cosias. Por isso não a devemos temer.


A grande biografia de Lou Salomé ainda não foi escrita. Mas, pelo que dela nos resta, fica uma lição final de amor, de paixão, de totalização da vida. Por isso Lou desejou ser cremada e que suas cinzas fossem jogadas no jardim de sua casa, em Gottingen: para que seu corpo pudesse se incorporar à terra e ser transformado em planta e flor.

Well, deu para entender o por quê de inspirar tanta paixão? Pois é, esse é só um pedacinho da vida dessa grande mulher. Recomendo que comprem o livro, "ouçam o disco, vejam o filme", qualquer coisa que venha de Lou jamais passará por nós impunimente, acreditem.



Leia: http://www.mulherportuguesa.com/index.cfm?Categoria=19&UltimaLinha=12
http://www.cefetsp.br/edu/eso/paixaolouandreassalome.html

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