Resignação

Como todas as mulheres da montanha, que no meio do gosto do amor enviuvam com os homens vivos do outro lado do mar, também ela teria de sofrer a mesma separação expiatória, a pagar os juros da passagem anos a fio, numa esperança continuamente renovada e desiludida na loja da Purificação, que distribuía o correio com a inconsciente arbitrariedade dum jogador a repartir as cartas dum baralho.
-O teu homem tem-te escrito, Maria? - perguntava o prior de Páscoa a Páscoa.
-Ele não, senhor. Há quinze anos...
Não acrescentava a mínima queixa à resposta. Fiel ao amor jurado, deixava que todos os encantos lhe mirrassem no corpo, numa resignação digna e discreta. Com o filho sempre agarrado às saias, como um permanente sinal de que já pagara à vida o seu tributo de mulher, mourejava de sol a sol para manter as courelas fofas e gordas. Depositária do pobre património do casal, queria conservá-lo intacto e granjeado. Se o outro parceiro desertara, mais uma razão para se manter firme e corajosa ao leme do pequeno barco.
-Nada, Maria? - O prior já nem se atrevia a alargar a pergunta.
-Nada.
Respondia sem revolta ou renúncia na voz. Objectivava a situação, lealmente. O que sentia por dentro era o segredo da sua serenidade.

Miguel Torga - Contos da Montanha (1941)



Coimbra, 08 de maio de 1953


Apelo

Porque não vens agora, que te quero,
E adias esta urgência?
Prometes-me o futuro, e eu desespero.
O futuro é o disfarce da impotência...

Hoje,aqui,já,neste momento
Ou nunca mais.
A sombra do alento é o desalento...
O desejo é o limite dos mortais.

Miguel Torga, in "Antologia Poética"




A Ceia

...

Nunca mais
Meus olhos terão de ver
Tanta solidão sem fim:
- Ser dono desta desgraça
De não ter terra onde nasça
Uma flor que cresça em mim...

Miguel Torga



A um Secreto Leitor


No silêncio da noite é que eu te falo
Como através dum ralo
De confissão.
Auscultadores impessoais e atentos,
Os teus ouvidos são
Ermos abertos para os meus tormentos.

Sem saber o teu nome e sem te ver
- Juiz que ninguém pode corromper -,
Murmoro-te os meus versos, os pecados,
Penitente e seguro
De que serás um búzio do futuro,
Se os poemas me forem perdoados.

Miguel Torga




Miguel Torga, poeta que eu adoro, era o pseudonimo de Adolfo Correia da Rocha.
Ele nasceu em 1907 em S. Martinho de Anta, concelho de Sabrosa, Trás-os-Montes, e faleceu em 17 de Janeiro de 1995 em Coimbra. Veio para o Brasil e ficou até 1925 quando regressou a Coimbra onde se formou em Medicina. Por volta de 1930, funda a revista Sinal. Funda pouco depois a revista Manisfesto. Começou a ser conhecido como poeta, tendo mais tarde ganho notoriedade com os seus contos ruralistas e os seus dezasseis volumes de Diário, estes publicados entre 1941-1995. Várias vezes nomeado para o Prémio Nobel da Literatura, tornou-se um dos mais conhecidos autores portugueses do século XX.



Leia mais: http://www.vidaslusofonas.pt/miguel_torga.htm
http://www.bragancanet.pt/filustres/torga.html

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