Carta para Hilda Hilst



Pôrto Alegre, 29 de dezembro de 70


Hildinha querida, estou chegando agora mesmo de uma semana na praia - chegando e encontrando o melhor presente de Natal ou Ano Nôvo que poderia receber. Fiquei demais comovido com o livro, com a dedicatória, com o "Lázaro" para mim, com o meu nome no prefácio. Orgulhsíssimo. Que bom, Hildinha, que recompensador pensar que tôdas aquelas nossas tardes batendo máquina, aquêles papos infindáveis à noite, as dúvidas, a pesquisa - pensar que tudo isso de repente ganhou forma concreta e comunicável aos outros. Você não imagina como tudo isso é importante para mim. Poucas horas atrás, no ônibus com um amigo, pensava em você, em Dante, na fazenda, pensava em tôda aquela fôrça mental que a gente desprendeu e me perguntava ao mesmo tempo "pra quê?". A resposta é o "Fluxo-Floema", é você dizer que não me esqueceu. Eu sei lá, estou demais feliz com êsse negócio. Está tudo tão limpo, tão solar.

70 também não foi muito bom para mim, pelo menos no sentido humano ou afetivo. Em têrmos de trabalho foi altamente recompensador, mas você sabe com eu sou carente e inseguro, talvez mesmo ávido. A semana passada decidi ir para a praia com mais cinco amigos. Ficamos lá 8 dias. Então eu acho que consegui me reencontrar quase que inteiramente. E lembrei muito de você. Não consegui compreender o teu silêncio, que me doía barbaramente. Pensei muito. Sabe, consegui uma visão bastante clara de tôdas as minhas falhas e precariedades. Isso me abriu em amor. De certa forma fui ingrato e injusto com você e Dante. Falei sôbre tudo isso com meu amigo, no ônibus, então foi extraordinário chegar em casa e encontrar o teu livro. Tudo aquilo que eu havia pensado e concluído abstratamente foi arrematado e definido pela chegada do "Fluxo-Floema". É demais mágico, Hildinha. Vou reler todo, palavra por palavra, e sei de antemão que vai ser ainda melhor que das outras vêzes. Antes de ser a grande escritora que você é, há o imenso ser humano, carregado de amor e bondade que você é de maneira ainda mais completa - isso é o que vou encontrar outra vez nas suas novelas. E na hora justa em que preciso. Como nunca. Tenho certeza que através dêsse livro outras pessoas vão aprender contigo tudo o que eu aprendi, e que é imenso. Muito bom, Hildinha, muito bom MESMO. Vais ver como agora as coisas vão mudar - eu sinto e sei.

Estou por ir ao Rio para lançar o meu "Limite Branco", que já está pràticamente pronto. Espero apenas o telegrama da editôra me chamando para a tarde de autógrafos. Vou com alguns amigos, todos dispostos a ficar por lá, trabalhando em artesanato, teatro, cinema, vivendo numa comuna. Pensei em passar antes por São Paulo, para ver você e Dante. Isso seria daqui a uma ou duas semanas, não sei se vocês estarão na fazenda, mas acho que isso não é problema, pois com o telefone fica tudo fácil. Telefonarei antes, marcando bem. Você não imagina o quanto eu queria passar uns três dias aí com vocês, a saudade que sinto é uma coisa quase absurda. Talvez também você pudesse me avisar quando será a tarde de autógrafos em SP, eu gostaria demais de estar lá: se você me avisasse com alguma antecedência eu poderia dar um jeito de estar presente.

Vou dar o outro livro que você me mandou ao Carlos Jorge Appel, que é o crítico mais quente daqui. Vou também escrever um artigo sôbre, não sei se sairá porque o meu nome está demais queimado nas "esferas políticas da imprensa gaúcha". Depois de algumas entrevistas e uma crítica sôbre o filme "If..." os diretores do jornal foram pressionados a cortarem as colaborações e a coluna de crítica cinematográfica. Milhares de coisas aconteceram, e o que ficou de imagem minha foi a de um escritor "underground", profunda e naturalmente maldito, o que é verdadeiro até certo ponto e não completamente agradável. Agora com a saída do romance talvez as coisas mudem.

Outra coisa: seria muito bom que mandasses o livro aos críticos do suplemento da imprensa oficial de Minas Gerais. É o único suplemento decente do Brasil, com um nível muito alto e uma linha bem definida. Podes crer que não é desperdício mandar a êles. Os nomes são: Murilo Rubião, Carlos Roberto Pellegrino, Humberto Verneck e Luiz Gonzaga Vieira; o enderêço: Suplemento Literário de Minas Gerais, Av. Augusto de Lima, 270, B. Horizonte, Minas Gerais. Aproveita e pede também para te enviarem o suplemento, é demais interessante, o único movimento literário "por dentro", no Brasil, é êsse de Minas.

Minha mãe te manda muitos abraços e deseja felicidades mis ao livro. Ela está muito bem, terminou seu curso de pós-graduação em Orientação Educacional, está de orientadora no melhor colégio do estado e com uma proposta para montar um gabinete particular de Orientação. Já disse a ela que nêsse passo acaba candidata a deputada e capa da manchete. Meu pai também está ótimo, de carro nôvo e tal. Os irmãozelhos idem, Márcia entrou para o ginásio com notas altíssimas em Português - vê só, parece que está pintando mais um escritor (a) na família.

Comigo, as coisas clareando aos poucos. Inúmeras experiências novas. As mais insólitas. Uma reviravolta completa no terreno sexual. Te contarei pessoalmente, sentado na sala branca, à luz de lampiões.

Antes que eu esqueça: Maciel andou por aqui durante dois mêses (voltou para a Europa a semana passada), maravilhoso, ganhando prêmios na Bienal de Veneza. Falamos muito em vocês. Ele gosta demais de ti e sempre diz que aquêles dias passados na fazenda foram das melhores coisas da vida dêle. Voltou agora para morar na Europa indefinidamente: é uma boa ponte para mim. Pretendo ir logo que tenha condições.

Queria que desses um grande abraço em Dante. Desejo a vocês um 71 divino, cheio de criatividade e amor. Um grande-grande-grande beijo do teu


Caio


PS- Na noite de natal na praia, fizemos uma vibração em azul, em conjunto pensando nas pessoas que amávamos. Você recebeu?


** Do livro: Caio Fernando Abreu: cartas- ed.Aeroplano

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